Encontros, desencontros: o cinema brasileiro na era da globalização.

Já se disse – e com alguma razão – que o cinema foi, desde o seu início, um fenômeno global. O aparente contra-senso: o cinema já beirava quase um século de vida quando a globalização aconteceu, se deve ao fato de que a pujança da indústria cinematográfica americana, no início do século XX, foi alcançada graças ao predomínio (ou à imposição) de seus filmes no resto do mundo. Seja ao ocupar os mercados já existentes, seja ao forjar novos mercados onde esses ainda eram incipientes ou nem sequer existiam, o cinema americano teria consagrado um modelo baseado no mercado mundial e na concentração da produção nas mãos de poucas e poderosas empresas, antecipando o que a globalização viria a operar, décadas depois, em relação a outros produtos e serviços. Não se contentando em anexar novos mercados, o cinema americano deu também lugar a um “modelo” de filme que acabaria sendo adotado por outras cinematografias mundo afora – também antecipando a homogeneização dos filmes a que a globalização viria desenvolver[1]. Continuar lendo

Política e rito: o papel da fotografia na construção do MST

(versão em francês aqui)

Maior movimento social pela reforma agrária do Brasil, o MST surgiu no Rio Grande do Sul há vinte anos. Ele desenvolveu ações extremamente originais, sendo a mais conhecida a ocupação de propriedades rurais improdutivas. O MST não inventou as ocupações, mas sistematizou-as e as estendeu por todo o país, consagrando-as como a forma de pressão mais eficaz pela reforma agrária; ele desenvolveu estratégias e procedimentos específicos para as ocupações, criou uma tecnologia, métodos de organização e funcionamento eficazes para a constituição dos acampamentos. A fotografia tem um papel decisivo na construção do MST: ela não apenas documentou suas ações e contribuiu para a criação de seus mitos, mas foi fonte de inspiração para algumas de suas estratégias políticas mais peculiares. É desta atuação da fotografia na dinâmica política do MST que pretendo tratar. Continuar lendo

Armand Robin – ofício de ouvinte, ofício de poeta

Capítulo da pesquisa inédita de Pós-doutoramento “Armand Robin e o ofício de ouvinte” realizada na Faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC-SP. 1991-1992.

Esse trabalho consistiu no exame da experiência ímpar do poeta bretão Armand Robin que se dedicou, durante o período da Guerra Fria, à escuta das rádios interiores dos países da URSS nas suas línguas originais; a partir do exame minucioso dos noticiários, Robin elaborava boletins bi-hebdomadários destinados a assinantes com um resumo do noticiário e um comentário pessoal a respeito da situação política nesses países. A elaboração dos boletins que contavam, dentre seus assinantes, com o Vaticano, o Serviço de Imprensa do Palácio do Eliseu, embaixadas, jornais, agências de notícias e altas personalidades do governo francês, tinha dois objetivos: obter informações inéditas, precisões ou simples interpretações que pudessem ajudar a compreender as informações oficiais filtradas pelos governos; tentar prever os acontecimentos. Continuar lendo

Palavra, política e mito na trilogia de Fontaínhas de Pedro Costa

Um dos temas mais recorrentes da crítica da obra de Pedro Costa é a indiferenciação, nos seus filmes, entre o aspecto documental e a ficção. Quer privilegiem uma dessas vertentes, quer se interessem pelas passagens de uma à outra, as análises sempre convergem ao enfatizar a originalidade desse cinema ao lidar com a realidade da vida e a ordem da invenção. Também o convívio ou a coexistência de uma fala comum, ordinária, e de uma linguagem mítica costumam ser distinguidos como uma das maiores conquistas dessa obra que tem no seu foco uma população exilada da palavra pela sua condição periférica. Na minha apresentação proporei o abandono dessa dualidade entre ficção e realidade, trazendo para o cerne da discussão o estatuto da palavra no cinema de Pedro Costa, na qual não verei como distintas, as dimensões ordinária mítica.  Continuar lendo