Política e rito: o papel da fotografia na construção do MST

(versão em francês aqui)

Maior movimento social pela reforma agrária do Brasil, o MST surgiu no Rio Grande do Sul há vinte anos. Ele desenvolveu ações extremamente originais, sendo a mais conhecida a ocupação de propriedades rurais improdutivas. O MST não inventou as ocupações, mas sistematizou-as e as estendeu por todo o país, consagrando-as como a forma de pressão mais eficaz pela reforma agrária; ele desenvolveu estratégias e procedimentos específicos para as ocupações, criou uma tecnologia, métodos de organização e funcionamento eficazes para a constituição dos acampamentos. A fotografia tem um papel decisivo na construção do MST: ela não apenas documentou suas ações e contribuiu para a criação de seus mitos, mas foi fonte de inspiração para algumas de suas estratégias políticas mais peculiares. É desta atuação da fotografia na dinâmica política do MST que pretendo tratar.

O MST se tornou conhecido, pelo menos fora do Brasil, por meio das fotografias de Sebastião Salgado. Mas suas ações já vinham sendo registradas de longa data por militantes e por dezenas de fotógrafos.  As primeiras ocupações na virada dos anos 70-80, além de porem em questão o tabu da propriedade privada, constituíram um gesto rebelde no refluxo dos movimentos sociais, ao final da ditadura militar. Dado o impacto e a repressão que suscitaram, elas colheram intenso apoio de organizações de esquerda, da sociedade civil, e de uma parcela da igreja, atraindo também o interesse dos fotógrafos. Ao perceber a importância da imagem fotográfica, o MST passou a usá-la como linguagem acessível ao entendimento e à expressão de sua base social, em sua grande xxxxxxxxxxe como instrumento político para conquistar a opinião pública. Estas fotos acabaram constituindo um “olhar” sobre sua atuação, e deram origem a um grande arquivo com uma iconografia única sobre os sem-terra.

 

Considerada “arcaica”, a questão da terra ainda persiste entre nós, mas assume nova complexidade num contexto em que a globalização, de par com o avanço tecnológico,  coloca novos problemas e novos desafios no mundo rural.  O MST surge neste contexto de grandes transformações, e uma das suas características é justamente o modo como tem encarado esse descompasso – o que está demonstrado na convergência entre a luta pela terra e uma agenda, digamos “contemporânea”: a luta contra os transgênicos, a mercantilização das sementes, a contestação à ALCA, ao FMI, mas também a criação de escolas, de cooperativas, a formação técnica e política dos acampados. Pode ser visto como um dos aspectos deste convívio entre o arcaico e o contemporâneo, a importância que uma técnica moderna – a fotografia – adquire na consolidação de um movimento cuja base social ainda não penetrou no mundo da imagem, e nem sequer domina as primeiras letras. O uso da fotografia pelo MST é um modo de lidar com este descompasso, e revela uma dupla dinâmica: a introdução da população rural ao convívio com a imagem e o esforço para se inscrever num momento histórico em que a informação e as imagens tornam-se uma grade de entendimento, de leitura e de atuação sobre o mundo.

O MST tem usado, em relação à fotografia, um procedimento semelhante às ocupações, estendendo até a imagem fotográfica esta prática que ele aciona com tanta desenvoltura para a terra. Mas além de se “apropriar” do olhar dos fotógrafos, fazendo-o seu, ele tem extraído também, do convívio com a imagem, inspiração para novas práticas e iniciativas originais. Assim, o relevo que a visualidade adquire nas suas diferentes ações e, mais ainda, o fato da visibilidade tornar-se um componente  estratégico na concepção e funcionamento dos acampamentos não pode ser dissociado da sua experiência com as imagens. O convívio com a fotografia contribuiu também para que o MST viesse a esboçar uma estética, por meio da criação e do uso coletivo de símbolos e de outras textualidades culturais, e a desenvolver uma prática ritualística, a mística –  baseada também na exploração da visualidade.

Uma fotografia de Daniel da primeira grande ocupação do MST, Fazenda Annoni em 1985 – mostra a entrada desta população na cena fotográfica e na história. Cinco destas mulheres são da mesma família e representam quatro gerações originárias do mudo rural. Unidas pelo sangue e pelo destino comum, certamente nunca foram reunidas numa foto – talvez nunca tenham sido sequer fotografadas. Tema clássico da foto documental, elas testemunham uma mesma condição social, imutável ao longo das gerações.

A foto mostra uma “gradação de olhares”, reveladora da posição de cada uma delas numa espécie de “escala” de familiaridade com a imagem. Duas ignoram a câmera, revelando seu alheamento à situação: a criança, por não ter consciência do que se passa, a mais velha por desconhecer, provavelmente, o ritual do qual participa. “Inocentes”, ambas foram “conduzidas”  até a cena fotográfica e dela participam “sob proteção”: o bebê está no colo, a mulher mais velha é abraçada por outra mais jovem, provavelmente sua filha, com o intento de integrar também ao cerimonial a personagem mais alheia a ele.

Enquanto a mulher mais idosa parece indiferente ao que se passa, a representante da segunda geração é a figura central da fotografia. Com o braço esquerdo  “sustenta” a mãe na nova situação, enquanto uma menina, provavelmente sua filha, tenta “penetrar” na cena agarrada ao seu outro braço. Respondendo pela coesão do grupo, esta mulher madura é a mais forte, experiente e provavelmente a mais ativa da família – não por acaso, os personagens dependentes nela se apóiam. Ao contrário das duas primeiras, ela olha para o fotógrafo; mas seu olhar não parece corresponder àquele que habitualmente lhe é dirigido. Este estranhamento  talvez tenha sua origem na nossa impossibilidade de detectar de que “distância no tempo” esta mulher olha o fotógrafo, não nos permitindo identificar, como bem diria Serge Daney, “o que nos olha” nesta fotografia.

Esta escala de olhares pode ser relacionada com o que Jacques Rancière chamou de “época áurea da fotografia”, quando havia uma relação de “convertibilidade mútua” entre o cotidiano e a história, e uma irredutibilidade da vida aos acontecimentos mais espetaculares e significativos. Esta aliança feliz deixou de ser “inocente”, segundo o filósofo, quando dois fenômenos tiveram lugar, inaugurando uma “crise” da fotografia: quando perdemos a capacidade de “ler” os acontecimentos da vida coletiva nos gestos dos corpos e quando se esvaiu a própria disponibilidade destas figuras anônimas para “emprestar”seu corpo às lentes,  e somar sua opacidade ao jogo das significações”.

Em relação a esta “crise”, a fotografia do MST constitui um caso peculiar: contemporânea do fim da solidariedade entre fotografia e história, a disponibilidade dos corpos que nela vemos sugere que ali convivem os diferentes “estágios” históricos descritos pelo filósofo: uma fotografia já advertida desta ruptura – a foto “engajada” seria justamente um esforço de reatamento com a história  –  e corpos disponíveis, que ainda manifestam diretamente sua presença. Uma das riquezas – e um dos desafios – desse material está neste convívio perturbador entre “eras” cujos limites não parecem ter sido ainda fixados. Todo o empreendimento do MST  deve ser considerado à  luz deste jogo com as distâncias temporais, sendo a fotografia  um instrumento privilegiado para lidar com tais descontinuidades: além de revelá-las, ela tanto paga um tributo quanto tira proveito desse descompasso.

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Descrente da política tradicional, do jogo da representação e do poder, o MST optou pela ação direta, que se presta “naturalmente” ao gosto dos fotógrafos. A criação de eventos coletivos na esfera pública para pressionar o estado e o aparato do poder praticamente “impõe” o registro pela imagem. Em função desta irradiação fotográfica, nos últimos vinte anos o público se familiarizou com as lonas pretas e seus habitantes. Mas a principal função da fotografia no MST é levar até os acampados –  analfabetos e pouco habituados às imagens impressas – uma “notícia visual” dos seus feitos e da sua expansão pelo país. Este é o objetivo do jornal do MST, que antecede a própria criação do Movimento, com seus 15 000 exemplares distribuídos em todos os acampamentos do país.

O arquivo fotográfico do MST abriga três regimes de imagens: imagens documentais; um “relato visual” feito por meio de uma espécie de “montagem” (associação de fotos ou desenhos); e imagens que devem se prestar  à inspiração ou à crença dos sem-terra. O maior feito político do MST não parece ser, entretanto, estranho à sua descoberta dos poderes da imagem: trata-se da transformação estratégica da visibilidade em campo de ação política. Vou lhes falar sobre esses três regimes de imagens e sobre a visibilidade como campo de ação política.

Foto documental e ação política

Por meio das ocupações, a posse da terra deixa de ser uma questão individual, ao sabor das forças e oportunidades econômicas, para tornar-se objeto de uma ação direta, coletiva, conflitual, que demanda estratégias específicas. Ocupar propriedades, prédios públicos, manifestar-se, fazer longas marchas pelo país, sofrer violência, massacre, receber apoio e solidariedade de outros grupos – são gestos de grande apelo fotográfico, que o MST aprendeu rapidamente a capitalizar, consagrando o prestígio da foto de ação.

A violência é, evidentemente, um item muito contemplado no arquivo, sendo que o MST tem um cuidado particular com esse tipo de imagem. Destinadas a mobilizar a opinião pública, são orientadas para circularem intensamente fora do Movimento.

A ocupação é a ação de maior prestígio no MST, seu ícone maior. A entrada secreta na terra de milhares de pessoas antes do amanhecer tem um caráter espetacular – que nem sempre pode ser documentado. Os acampamentos são o item mais fotografado do arquivo do MST.

O acampamento não é um lugar que “abriga” ações; ele é, em si mesmo, uma ação; permanecer debaixo da lona dias ou anos é o gesto de luta e de resistência que credencia o acampado a reivindicar a atribuição da terra. Estudos recentes sugerem que os acampamentos são fruto de técnicas ritualizadas para realizar as ocupações, compreendem uma organização espacial, uma etiqueta para neles entrar e se instalar, regras de convivência, um vocabulário próprio e elementos dotados de forte simbolismo, como a barraca e a lona preta.

Desde muito cedo os fotógrafos intuíram a novidade e importância deste espaço precário, anotando que ali se instituíam novas práticas de socialização, tudo registrando com espantosa minúcia. Antes que os especialistas começassem a estudar os acampamentos como “figuras espaciais” peculiares, os fotógrafos já buscavam captar a “forma” do acampamento: multiplicam-se as vistas gerais que mostram sua situação no espaço geográfico, como se eles constituíssem uma “assinatura” na paisagem. Todos os acampamentos  foram fotografados pelo menos uma vez segundo os mesmos padrões: vista de conjunto, deixando clara sua localização, sua ordenação, sua conformação, o volume constituído pelo agrupamento dos barracos e sua posição em filas. A construção dos barracos, os materiais utilizados e sua fragilidade (plástico, papelão, madeira, tecidos), o acúmulo desordenado de objetos, a inseparabilidade entre o dentro e o fora – tudo foi registrado ao longo de todos esses anos. As fotografias gostam de mostrar o “proprietário” ou ocupante à  “entrada” do barraco, comprovando que aquele lugar lhe é destinado. É muito comum a fotografia de famílias e de crianças, assim como dos objetos rudimentares, seu acúmulo testemunhando o cotidiano precário dos acampamentos, mas também  sua grande vitalidade – se no campo o repertório é limitado, tudo pode vir a servir  e assumir funções inusitadas. A maioria das atividades, feitas no exterior, se oferecem à fotografia. O fogão é um dos objetos de eleição da fotografia –  a preparação da comida, que reúne a família ou o grupo, testemunhando a importância ao mesmo tempo real e simbólica do alimento – a própria razão de ser do acampamento.

A figura humana – o Coletivo e o indivíduo

Objeto privilegiado da fotografia do MST, a figura humana está no centro da ação, seja por meio do coletivo, seja do indivíduo. A grande importância do coletivo funda uma longa linhagem fotográfica. A formação de grupos com diferentes finalidades dentro dos acampamentos visa à organização e o estímulo à participação. Seu registro é freqüente  porque a representação do grupo, como uma espécie de “corpo político” em movimento é um elemento decisivo na construção do MST. Os grandes grupos do MST  aparecem como um “povo político” – indivíduos decidem irromper no espaço político que não lhes é tradicionalmente destinado, “ocupando-o” com suas ações, gestos, palavra. Este corpo coletivo é dotado de clareza e segurança quanto às razões da sua constituição e aos seus objetivos; ele é um corpo  “consolidado”, seguro de si, uma entidade dotada de existência própria e de finalidades que, de certa forma, se “impõe” à câmera.

O indivíduo

O  mal estar do camponês ao ser fotografado, sua relação infeliz com seu corpo, que interioriza uma imagem pejorativa que os outros dele fazem são bastante conhecidos. Originários do desmantelamento do mundo rural, os sem-terra não beneficiam da inserção conferida pela posse da terra, que daria lugar a esta relação infeliz. Como pudemos ver a propósito das quatro gerações de mulheres, na maior parte do tempo eles não conseguiram alcançar a noção de imagem de si, nem adquirir as convenções da distância do outro. Captados, ainda por cima, no seu local de habitação, onde os termos “seu” e “habitação” já constituem o núcleo de um conflito, nada aproxima esses personagens da pose perturbadora da qual falam os críticos.

Durante muitos anos o MST deu preferência à representação do coletivo, sempre apresentado na primeira página de seu jornal. Mas os fotógrafos não renunciaram à imagem do indivíduo que acabou se tornando, sobretudo após o contato com Sebastião Salgado, um trunfo a mais na estratégia do MST. Foi por meio do retrato que o MST descobriu a foto como um signo, a possibilidade da sua “leitura”. Ao identificar as marcas do trabalho, da história, do destino coletivo nos seus retratados – quando pôde “ler” o coletivo no individual – o MST tomou tais sinais como “prova” de uma “vocação” para a terra, opondo-as aus críticos que negavam o destino comum dos sem-terra.

Pode-se ver a experiência dos acampamentos de um outro ponto de vista, como uma interrogação sobre a noção mesma de indivíduo. Eles propõem novas formas de socialização, novos comportamentos susceptíveis de dar lugar a transformações – a um devir. Muitos dos futuros acampados definem a sua decisão com a frase: “Vou virar sem-terra”. Também os que já obtiveram sua parcela continuam se autodenominando “sem-terra”, como se esta não fosse uma condição, mas um “estado” que se escolhe e adquire. Tomado como aquele a quem algo “falta”, é habitualmente o passado que dá conteúdo ao termo´sem-terra. A estratégia das ocupações teve o dom de reorientar o sentido desta expressão, do passado para o futuro. Ao entrarem no acampamento, os indivíduos “tornam-se” coletivamente “sem-terra”. Tornar-se sem-terra não é apenas uma modalidade de se representar no espaço do acampamento, de passar a ser visto, mas a passagem por uma nova experiência baseada em práticas coletivas, e na possibilidade de um aprendizado político.

A experiência dos acampamentos é a condição desse devir, da construção da coletividade – e, nesse caso, a fotografia não fixa o “retrato” do indivíduo, mas pode ser vista como um registro da constituição desta  entidade em processo. Por isto encontrarmos poucos “retratos” no sentido clássico no arquivo. O retratado raramente aparece isolado do seu contexto; à entrada do barraco ou nas suas imediações, desempenhando tarefas cotidianas, sempre se verá algo do seu entorno, seus objetos, o espaço que ele constitui com sua ação. A fotografia da comida, o universo de significação que ela mobiliza “acompanham” esta transformação do acampamento. Se uma das cenas recorrentes é o seu preparo, a imagem que demonstra a auto-estima reconquistada também é feita na cozinha, a família em torno do fogão, ao lado de suas panelas reluzentes.

Rito

Marcada pelas origens cristãs do MST, a fotografia faz valer a “crença” na imagem – seja construindo uma espécie de “relato visual” a partir de fotos ou desenhos, seja fazendo com que a fotografia se preste à inspiração e ao engajamento dos sem-terra. Ainda neste regime de imagens, a foto pode ser integrada às práticas rituais do Movimento.

Conflito e rito são praticamente inseparáveis na trajetória do MST . Em 1981,  quando 300 famílias expulsas de suas terras se instalaram entre duas estradas no Rio Gde do Sul, dando origem ao acampamento do Natalino, conflito e rito se confundiam nas práticas que criaram, inclusive, as condições para o nascimento do MST. A CPT – braço de esquerda da igreja católica no campo – esteve na condução do Natalino. Casando discurso religioso e político, a luta política dos camponeses e sua concepção do sobrenatural ali se identificaram completamente. As práticas religiosas  –  missas, marchas e jejuns – assumiram conotação política, enquanto os objetivos políticos adotaram feição religiosa: a luta contra a exploração foi assimilada à busca da terra prometida,  promessa de liberdade e do mundo divino foram confundidas. Símbolos foram postos em circulação que ativavam o elemento mágico e faziam valer a função afetiva que os camponeses atribuem às expressões religiosas. No centro do acampamento se instalou uma enorme e pesada cruz para significar a grandeza do sofrimento dos sem-terra e a necessidade da sua união. Ao redor dela faziam-se tanto as celebrações, quanto os atos políticos.

Pouco a pouco,  símbolos da experiência cotidiana dos acampados foram agregados à cruz: as escoras que a sustentavam significavam os apoios recebidos de diferentes instituições; e as mortalhas penduradas aos seus braços, símbolos das crianças mortas durante a provação que durou 3 anos. Com a criação e secularização do MST, quando o aspecto religioso foi substituído por um discurso socialista nuanceado,  a cruz foi substituída pela bandeira, pelos símbolos laicos boné e camiseta) e pela representação seus heróis: cartazes ou banners com as figuras deMarx, Lênin, Ho chi Min, o Che, ao lado de heróis nacionais como Zumbi, Antônio Conselheiro. Esta mistura de fragmentos culturais integrados na religião, da simbologia , dos rituais e da imagística socialista acabaram dando origem a uma estética que combina textualidades religiosas, socialista e camponesa.

Primeiro acampamento insistentemente fotografado, além tornar visíveis pela primeira vez os sem-terra, a fotografia do Natalino tornou também visíveis os elos entre conflito e rito; ela testemunhou, além disto, também o “deslizamento” dos signos religiosos aos laicos, e contribuiu para que as cargas afetivas fossem transferidas de uns aos outros; do mesmo modo, a fotografia foi incorporada enquanto tal aos novos ritos e cerimônicas do MST.  Símbolo primeiro dos sem-terra, os fotógrafos procuraram desde cedo mostrar a cruz no centro do acampamento; mais tarde a bandeira com o logo tomará seu lugar, anunciando a “assinatura” da ocupação. Às vezes as duas estarão juntas, comprovando o intercâmbio dos signos.

São duas as modalidades de imagens que devem suscitar a crença ou a inspiração:  “relato visual” e a prática mística. Constituindo uma espécie de narração, o relato visual é em geral apresentado sob a forma de um cartaz com imagens de heróis buscadas no passado. Apresentada durante cerimônias, seminários, reuniões e cursos, seu objetivo não é promover uma “volta” ao passado, nem tampouco propor uma utopia, mas “dotar” o MST de uma “tradição”: se o socialismo é uma espécie de “horizonte” que o Movimento não se preocupa em deixar muito claro, a evocação de seus heróis pretende sobretudo homenagear sua radicalidade; do mesmo modo, a reivindicação do messianismo dos séculos XVII e XIX não evoca a nação nem a identificação com “um só povo”, mas quer tomar sua radicalidade e seu questionamento do regime político vigente como fonte de inspiração; as Ligas Camponesas, por sua vez, não são exemplares por suas idéias comunistas, mas por sua habilidade em tratar com o estado e com os interstícios da lei [1].

A mística

O relato visual remete ao passado, à vontade de incorporar a reputação dos heróis evocados; a mística se projeta no futuro. Desenvolvida durante as ações coletivas, suas dramatizações se constroem em geral em torno da história do MST, de seus princípios, objetivos e heróis preferidos. A mística pretende homenagear a capacidade de lutar e a tenacidade para atingir os objetivos. Em vez da terra prometida, como no Natalino, ela prefigura um futuro cuja antecipação deve criar a vontade de lutar e a união para a ação. A mise-em-scène da luta dá lugar a um dos ícones fotográficos do MST: os sem-terra brandindo sobre suas cabeças as ferramentas de trabalho como se fossem armas.

“Fazer a mística” é um outro modo de traduzir a política, transpondo-a para o campo dos afetos:  as dramatizações têm por objetivo tocar as emoções,  promover a união na emoção, incentivar a crença no valor da luta e na transformação da sociedade. Por meio das emoções, a mística ativa a esperança de fazer parte destas transformações. Concebida coletivamente por instâncias apropriadas, recorrendo aos símbolos: bandeira, hino, mas também aos elementos mais imediatos, aos materiais correntes, aos fatos, aos acontecimentos, ela utiliza objetos: galhos de árvore, frutas, flores, sandálias, pratos de comida, pedaços de lona; mas também gestos: punhos cerrados, braços erguidos, mãos dadas – e também palavras e cantos. A luta política não difere da mística, mas é por ela motivada e constituída.

A mística tira proveito da familiaridade do MST com a imagem, de sua facilidade em operar politicamente a visualidade. Não por acaso, a fotografia surge “dentro” da mística, quando as fotos dos heróis do movimento se tornam objeto de mística. Do mesmo modo, o relato visual transforma suas imagens em objeto de culto: assim encontramos a imagem do Che, o herói por excelência do MST, perfeitamente integrado no cotidiano dos sem-terra, sua imagem vizinha das fotos de família e dos objetos do dia-a-dia.

Acampamento – inversão da visibilidade.

A questão mais contundente posta pela fotografia do MST não se refere à crítica às facilidades da arte dita política ou aos automatismos do registro da ação direta – levado à saturação pelo jornalismo – nem à “crença” na imagem – todos temas já percorridos pelo debate em torno da fotografia contemporânea. O maior interesse do arquivo está, por um lado, no registro da constituição desta nova entidade – o sem-terra; por outro, na constituição de uma percepção da visibilidade como “campo” de ação política.

A contribuição mais original da fotografia para a construção do MST é menos direta, e diz respeito à elaboração de sua concepção estratégica: ela está na inversão de sentido da visibilidade dos acampamentos, deslocando-a de um papel passivo para uma função ativa.  Para um melhor entendimento de tal inversão, seria interessante comparar estes acampamentos que contam com 20, 30 pessoas, ou com 3000, com os acampamentos de imigrantes, de refugiados políticos e de deslocados que se multiplicam pelo mundo globalizado, e em estado de guerra permanente. Agravada com o impacto de novas formas de produção introduzidas no campo brasileiro, sobretudo após a globalização e com o avanço tecnológico, a questão da terra tem acentuado o “descarte’ social dos camponeses, tornando sua vida muito parecida com a desses outros excluídos, vítimas de contextos diversos. Abrigando uma população que também perdeu a sua relação originária com o espaço, os acampamentos não se limitam, no entanto, a uma função negativa, redutora das potencialidades de seus habitantes – como no caso dos outros campos aqui evocados – mas constituiem, ao contrário, uma figura espacial de grande operacionalidade.

Ao estudar a relação entre globalização e geopolítica em relação aos campos, Silvaine Bulle mostra a semelhança entre o modelo de internacionalização forçada (campos geridos por organizações internacionais, como em Israel) ou da guerra (refugiados) ,com o único objetivo da manutenção da ordem, da vitimização e chama atenção para o estabelecimento de uma visibilidade política de seus espaços residuais, dando origem ao que ela chama de “informais”- cidadãos sem estatuto. Apesar de guardarem semelhanças, os acampamentos do MST não geram vitimização, inércia espacial, caracterizando-se, antes, como uma ação política cujo principal trunfo é a inversão de sentido da visibilidade de sua população para garantir a inclusão social e propiciar o acesso à cidadania.

Permanecer nesse lugar em princípio proibido não é só um modo de melhor se defender da aproximação (da polícia ou dos pistoleiros), e de se fazer visível,  é um enunciado, a declaração de um objetivo político: obter a sua parte da terra. Além de ser uma figura espacial, o acampamento é um fato político. Não se trata apenas de uma base para ações, mas de uma forma de luta política, de um componente estratégico fundamental para os camponeses. Nele os sem-terra criam uma organização própria, fundada em grupos de trabalho ou comissões (alimentação, segurança, educação, comunicação, etc) e diferentes instâncias de decisão, às quais se sobrepõe a assembléia geral. Além de atrair a atenção pública, protegendo o grupo da repressão e concentrando as iniciativas de apoio, o acampamento opera uma valorização intuitiva da união: o fato de estarem juntos, voluntariamente, torna por sua vez possível o desenvolvimento de discursos e de práticas comuns: políticas, religiosas ou místicas e comunitárias.

Esta inversão do sentido político da visibilidade – do controle exercido nos campos por uma autoridade que gera os “informais”,  para uma função estratégica definida pelos acampados do MST – fazer-se visível como instrumento de luta política – não é alheia ao seu convívio e aprendizado papel da imagem na sociedade contemporânea. Esta anexação da visibilidade às ferramentas políticas do MST é tributária da sua descoberta do potencial político da imagem e de seu uso continuado.  Se o objetivo da ocupação é fazer-se visível para as instituições, para a opinião pública, para a imprensa e para os próprios sem-terra –  poderíamos opor aos “informais” definidos por S. Bulle, a noção de “forma-acampamento” proposta pela antropóloga Lygia Sigaud, que se manifesta pela convergência entre a regularidade formal dos acampamentos (barracos cobertos de lona alinhados formando em geral filas em linhas paralelas, preferência por lugares elevados (colinas, proximidade com bosques), e as estratégias geradas no seu interior, destacando justamente a importância da visibilidade gerada por tal conjunção. Os acampamentos correspondem, para esta antropóloga, a uma “forma específica de tecnologia política particular de visibilidade” originária do sul do Brasil, onde se desenvolveram as técnicas materiais e sociais necessárias às instalações dos acampamentos.

Fazer-se visível aos opositores, aos interlocutores implica em fazer-se visível, coletivamente, como “sem-terra”. “Tornar-se” sem-terra.

Stella Senra


[1] O MST reivindica um socialismo que não define com muita precisão. Avançando a necessidade de transformação social, o fim da exploração, a construção de uma sociedade mais justa, ele não deixa de se colocar a questão dos benefícios do sistema democrático. Assim, diferentemente dos movimentos camponeses de inspiração marxista, seu projeto de transformação não supõe a eliminação do antagonismo principal, mas uma restauração das garantias associadas à democratização das relações sociais e políticas no meio rural.

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