Blade Runner e a renovação do pacto

Desde que a conduta dos personagens da tela se pareça com a dos homens, desde que seja humana sua ação, é inútil tê-los diante de nós em carne e osso ou ocupando um espaço bem real: enquanto tal, a realidade deles nos basta. Ou seja, é possível perceber ao mesmo tempo objetos ou acontecimentos como existentes ou como imaginários, como figuras reais ou como motivos luminosos sobre a tela de projeção. É isso que funda a arte do filme.

Rudols Arnheim

O tempo é gerador do cinema: o que se subtrai na fabricação das imagens fixadas pela câmera e o que lhes é acrescentado pelo projetor na hora do espetáculo. Por isso a experiência sempre secreta do cinema se atém a essa outra experiência do tempo que é a nossa memória: outro modo de presença a nós de imagens pela eliminação e acréscimo de camadas de tempo.

Se no cinema o corpo está, de certo modo, ausente no escuro da sala, todo o nosso ser passa pelo olhar, onde se traduz nossa experiência da visibilidade também na memória, um certo obscurecimento da presença imediata introduz um outro modo de visibilidade: visibilidade sem olho e sem imagem – ninguém olha, nada se oferece ao olhar. A memória é visibilidade que se maquina na ausência do objeto e do corpo, enquanto no cinema é a imagem que, nessa dupla ausência do corpo e do objeto, maquina a visibilidade.

Memória e cinema nos propiciam uma experiência própria das imagens e do tempo, a cujo contato acedemos por uma espécie de absolvição instantânea do corpo atual.[1] Postado além dessas experiências, o aceno da morte: na memória, a morte é o limite à velocidade vertiginosa ou extremamente reduzida que podemos imprimir ao tempo; no cinema, aprendemos o próprio consumo do tempo como imagem.

Se a imagem maquina a visibilidade no cinema, quando em Blade Runner , o caçador de andróides, o ser humano gera a própria cópia – o replicante – revira-se a máquina pelo avesso: a morte é o resíduo dessa operação em que é o próprio cinema que se encena, ao encenar a subterrânea  ligação entre o tempo e o olhar.

Imensa, uma grande pupila –  o primeiro plano do filme – preside à encenação.

No replicante, tempo e olhar se agenciam de forma mais que curiosa. Enquanto mera cópia do homem, ele não tem memória: implantes lhe foram aplicados e com eles o replicante convive como se fossem seus. Uma estranha relação prende sua curta ou ausente memória ao olho: não é aquela, mas este o revelador da sua verdadeira identidade. Por um fenômeno particular, é a diminuição da pupila que denuncia a redução do humano na cópia, redução que passa pela ausência de passado. Na angústia de ter de falar sobre um passado que não conheceu – esta é uma das cenas do filme – o olho do replicante revela o segredo que, às vezes, nem ele próprio conhece.

Se o olho o denuncia, é também através dele que o replicante busca assegurar a sua “humanidade”: como se vê com os personagens replicantes do filme, fotos, muitas fotos fornecem a ilusão de uma experiência anterior,  garantem a existência de uma memória “palpável”.

O tempo, que ameaça igualmente o homem e sua cópia (os replicantes têm tempo programado de vida), vai os reunir no medo da morte. Ao policial do filme cabe caçar os replicantes rebeldes que querem viver mais do que o programado: em contrapartida, os replicantes matam na luta pela prorrogação de seu tempo.

O palco em ruínas onde se debatem Roy, o replicante, e Deckard, o policial, é como um palco onde, mais que um diálogo entre dois personagens solitários diante da morte, se encena o encontro entre o espectador e o filme – um diálogo em que só a criatura do cinema, o replicante, tem tempo de duração programado. Alí se defrontam o homem e a imagem, e o palco que vai reuni-los é o lugar onde é selado, na verdade, nosso próprio pacto com o cinema. É a morte de Roy, imagem maquinada, que assegura a permanência do cinema: ela figura a morte dos nossos “replicantes”, esses homens e mulheres fabricados à nossa imagem e semelhança, que vivem e morrem para nós e em quem aplicamos nossos implantes, para com eles nos encontrarmos na solidão de uma sala escura. Onde o pacto, sempre o mesmo, se renova.

Stella Senra


[1] Experiência explorada por Jean-Louis Schefer em L´homme ordinaire du  cinema, Cahiers du Cinéma/Gallimard, Paris, 1980.

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