Palestra

Em outro momento já falei do jornalista como personagem do cinema. Agora vou tomá-lo como uma espécie de operador da economia narrativa. Ao ser considerado nesta nova perspectiva, o jornalista deixa de ser tomado como “personagem”  – um ser dotado de certas qualidades ou características que o qualificam para uma determinada ação; suas características pessoais e profissionais passam a ser levadas em conta na medida em que são postas a proveito da “armação narrativa”. O que acontece de curioso com o personagem do jornalista é o fato de que ele possa ser usado tanto no sentido de consolidar um modelo narrativo, como fizeram os “filmes de jornalista” quanto, no sentido oposto, quando o filme pretende marcar sua distância da narrativa clássica. Talvez se possa invocar uma certa “plasticidade” desse personagem, que se presta a funções tão divergentes entre si no cinema; mas, em todo caso, é certo que sua atividade em prol da verdade faz dele o personagem através do qual o cinema tanto pode afirmar a verdade das suas imagens quanto se interrogar sobre elas, ou sobre si mesmo.

Como o policial, o detetive, o jornalista foi objeto de interesse do cinema quando se constituíram os gêneros cinematográficos, no início do século XX. Como tal ele foi uma “construção”, que guardou seus traços mais evidentes e mais atraentes para esta sorte de cinema – uma espécie de clichê. Mas, ao mesmo tempo em que contribuía para a consolidação da narrativa clássica, o personagem do jornalista foi também uma espécie de “operador” decisivo quando o filme focalizou uma temática cara ao cinema – a questão da verdade. Esta questão da verdade pode ser tratada em mais de uma dimensões:

  1. ela pode ser tema ou objeto do filme (quando os personagens vivem o dilema profissional da verdade e da mentira); há toda uma gama de filmes sobre o assunto: por exemplo, o jornalista descobre a verdade mas não pode contá-la por diferentes razões; ou então sofre pressões para mudá-la, escondê-la.
  2. no plano auto-reflexivo, isto é, quando o cinema pensa sobre si mesmo. Isto pode se dar de duas maneiras:
    1.   quando, por meio do personagem do jornalista, o filme tem na sua mira a relação ficção/realidade, subjetivo/ objetivo, e toca nos pressupostos da narrativa cinematográfica.
    2. Quando o filme trata dessa outra espécie de “ficção” do sujeito – a identidade – e o personagem do jornalista é posto para viver esse dilema do mundo moderno por excelência.

Não é de estranhar, assim, que muitos dos filmes que se destacaram, ao longo da história do cinema por colocar em questão o modo como o cinema conta suas histórias, tenham como seus personagens justamente jornalistas: lembremos, por exemplo, de Cidadão Kane, e de seu papel fundamental no questionamento da relação entre objetivo e subjetivo no cinema. Também não é de espantar que a questão da verdade – em diferentes aspectos: moral, filosófico – tenha sido examinada por meio de histórias que tinham como personagens, justamente, jornalistas: lembremos de Beyound a reasonable doubt, de Fritz Lang, por exemplo, em que o jornalista se faz passar por assassino para questionar a pena de morte; ou de Blow up, em que um fotógrafo investiga a realidade por trás de suas imagens.  Assim também, não causa estranheza que muitos filmes tenham abordado o tema da identidade por meio do personagem do jornalista – como acontece com Passageiro profissão repórter, outro filme de Antonioni.

Também devido ao seu papel de testemunha dos fatos, muitos filmes tomaram o jornalista como personagem emblemático para tratar de momentos históricos de grande vulto: foram esses profissionais que assumiram papel de comando em dois filmes brasileiros que marcaram instantes históricos decisivos: Desafio, de Paulo César Sarraceni, que teve como pano de fundo o clima instalado no país pelo golpe militar de 1964, e Terra em Transe, de Glauber Rocha, que focalizou os dilemas colocados pelo endurecimento do regime militar na segunda metade dos anos 60.

Nosso programa:

  1. Em primeiro lugar passaremos rapidamente algumas imagens de Jejum de amor, 1940, filme que ilustrará a primeira função do personagem – a consolidação da narração clássica. Nesse filme, estudaremos algumas das cenas mais sugestivas a respeito desse tema – e, dentre elas, uma que trata especificamente do tema da  causalidade.
  2. Em seguida passaremos a considerar a narrativa cinematográfica de um outro ponto de vista: como um modo de por em relação sujeito e objeto. A narrativa seria o arranjo feito pelo filme para por em relação imagens objetivas: vistas pela câmera, e imagens subjetivas: vistas pelo personagem. Aqui o filme a ser considerado é Cidadão Kane, de Orson Welles. Kane foi feito na mesma época que Jejum (o filme foi lançado em 1941), mas a proposta do filme vai no sentido oposto, de se interrogar sobre o modo de contar uma história. É isso que tentaremos examinar no filme.
  3. Prosseguiremos com a mesma noção de narrativa: um modo de relacionar sujeito e objeto, para tratar de dois temas: a identidade e o real. Se a narrativa estabelece uma nova dinâmica entre sujeito e objeto, que acaba pondo-os em questão, do lado do sujeito o tema que emerge é o da dúvida sobre a identidade: é o que examinaremos no filme Passageiro profissão repórter, l967, de Michelangelo Antonioni; enquanto, do lado do objeto, o que é posto em questão é a possibilidade de acesso ao chamado “real” – o que será estudado em Blow up, também de Antonioni (1965).
  4. Por último procuraremos situar o personagem do jornalista no contexto das grandes transformações pelas quais passou e ainda passa a informação no mundo digital. Por um lado é bom lembrar como esta atividade mudou a partir da revolução digital e da constituição das redes – o que será feito a partir do exame de cenas do filme Max Headroom, twenty minutes into the future, 1985, de Annabel Jankel e Rocky Morton. Em seguida tentaremos aventar a hipótese de um certo esvaziamento do personagem a partir do momento em que a expansão e o fácil acesso à informação transformou todos nós, também, numa espécie de jornalistas.

Narrativa

O cinema pode ser considerado como um modo de contar histórias. Esse modo de contar se chama narração. A narração tem sido estudada desde o início da história do cinema e há mais de um modo de considerá-la. Tomaremos de início a narração tal como foi estabelecida no cinema clássico americano. O que é isso? Entende-se por cinema clássico americano um padrão cinematográfico que se desenvolveu e se consolidou no cinema americano, expandindo-se por todo o mundo; esse padrão foi posto em crise a partir da  segunda guerra mundial, com a emergência do que se convencionou chamar de “cinema moderno”.

O que é a narração nesse cinema clássico? O crítico americano David Bordwell, um dos grandes especialistas da narratologia, aponta alguns dos elementos dessa narrativa: o filme apresenta indivíduos definidos psicologicamente que buscam resolver um problema ou atingir objetivos específicos. No decorrer dessa busca eles entram em conflito com outros personagens ou com circunstâncias adversas. A história acaba com a vitória, ou com a resolução do problema, com a realização ou não dos objetivos. O elemento causal é decisivo nesta modalidade de narração – a causalidade é o elemento unificador da narração e determina os princípios de organização da história. Há uma “ordem” da história, o que fica evidente no “deadline”: o “deadline” é uma das principais características da narrativa clássica e significa que há um tempo determinado para resolver o problema ou atingir o objetivo.

No filme clássico há em geral duas tramas paralelas: uma na esfera do trabalho, ou a missão, e a outra na esfera do romance. O filme é constituído por cenas distribuídas segundo critérios que antecedem de muito a existência do cinema: unidade de tempo, de espaço e ação. O tempo é baseado seja na continuidade temporal – quando o filme considera o tempo de duração da reportagem, desde o início da apuração dos fatos até a conclusão ou publicação da reportagem; seja na duração intermitente porém consistente: saltos no tempo, volta no passado, por exemplo: na apuração dos fatos o jornalista investiga algo de um passado muito distante e volta ao tempo atual. As configurações espaciais são motivadas pelo realismo: assim, o filme de jornalista, por exemplo, se passará tanto na redação quanto no lugar da notícia. Isto significa que o tempo e o espaço são bem definidos e fechados, enquanto a causalidade é aberta: afinal todo o filme é construído em busca dessa causa, ou para realizar algo em função dela.

Em outras palavras: esse modo de ver a narração leva em conta a relação estímulo-resposta ou a cadeia sensório-motora.

Por esta sucinta descrição dos critérios que regem a narrativa clássica, fica clara a convergência entre o filme clássico e o procedimento jornalista. O jornalista precisa descobrir a verdade dos fatos, e sua busca passa pela investigação da causa do acontecimento. Seu trabalho praticamente aciona os mesmos elementos da narrativa clássica, ou melhor, a duplica. Basta o filme acompanhar a investigação do jornalista para preencher os requisitos dessa narrativa.Daí a insistência do cinema nesse personagem que, de resto, tem um desempenho narrativo parecido com o do policial e o do detetive – os dois outros personagens que deram origem a gêneros cinematográficos e que, não por acaso, também trabalham com a busca da verdade. Não por acaso, os filmes de jornalistas costumam ter o policial como um personagem de destaque, e, em geral, em competição com o próprio repórter. Assim como o filme policial também costuma contar com um ou mais jornalistas como personagens secundários.

Além dessa convergência narrativa, o jornalista interessa ao cinema porque tem uma atividade “moderna” como o próprio cinema, que envolve tecnologia, criação e trabalho em equipe. Tanto quanto o cinema, o jornalismo é uma prática essencialmente urbana – seu elo com a cidade é fundante – e, como aquele, se endereça ao público de massa.

Jejum de amor

O filme de Hawks foi tirado da peça The front page , de Bem Hecht, 1928. O texto, de grande sucesso no teatro, beneficiou de grande interesse do cinema, tendo tido 4 versões em longa metragem. A primeira e mais fiel das versões é de 1930 de Lewis Millestone (A última hora, entre nós); em seguida vem a de Hawks em 40; depois a de Billy Wilder (A primeira página, 1974); depois a de Ted Kotcheff (Trocando de canais, 1988) – fora as versões para televisão.

Como se trata de uma peça, é mais fácil manter a unidade de lugar: afora a primeira cena na redação, tudo se passa na sala de imprensa da delegacia. Hawks foi, aliás, o único diretor a filmar externas na sua versão, a eletrizante fuga de Earl  que começa pela sala de imprensa e termina na rua. Também a unidade de tempo é garantida pelo trabalho do jornalista – que tem o seu deadline. No caso presente, como o caso Williams é um pretexto para a campanha do jornal contra o prefeito corrupto, o filme termina quando repórter e editor desmascaram o prefeito e o xerife.

Aqui também há duas tramas entrelaçadas: a tentativa de entrevistar o prisioneiro e influenciar, com a notícia, a decisão sobre indulto pedido, e o romance: a repórter Hildy Johnson é ex-mulher do editor Walter Burns; vem à redação para comunicar seu futuro casamento e se vê envolvida, pelo editor que quer de volta a repórter e a esposa, na cobertura do caso Earl Williams.

Também há subtramas no filme: no plano do trabalho a subtrama principal é o conflito com o prefeito e o xerife, que querem usar a execução do prisioneiro nas próximas eleições. No plano do romance, a subtrama é dada pela presença do noivo de Hildy e pelas inúmeras encrencas em que o editor o mete, para impedir o casamento de sua ex-mulher e garantir a realização da reportagem.

Todos esses elementos podem ser encontrados na primeira e na segunda cenas do filme. A primeira, na redação, começa com um travelling lateral que descortina o ambiente de trabalho: uma redação de jornal com sua disposição de mesas e máquinas de escrever,  povoada de gente trabalhando: repórteres, telefonistas e cheia de movimento. A câmera vai da direita para a esquerda mostrando o fervilhante ambiente de trabalho; esse passeio na verdade lhe permite “ir buscar” Hildy no lado esquerdo do espaço, quando esta sai com o noivo do elevador. Essa observação pode parecer supérflua; mas devemos nos lembrar que o recurso de mostrar a redação como uma espécie de “fábrica” da notícia ganhou tanta importância que saiu da ficção para entrar na “realidade”, por assim dizer. Hoje os jornais televisivos têm como pano de fundo dos apresentadores, ou na sua própria apresentação a própria redação onde os jornalistas trabalham nos seus computadores. Essa idéia de mostrar o lugar do trabalho ainda nos dias de hoje, em que as redações já não fervilham mais, e são pacíficas salas com computadores silenciosos (como qualquer escritório)  é um modo de mostrar o trabalho jornalístico como algo emientemente “técnico”, que exige equipamentos sofisticados – quase como uma sala de cirurgia onde especialistas lidam com um bem complexo e que exige muitos cuidados – a notícia.

Em seguida o movimento se dá na outra direção: travelling da esquerda para a direita, acompanhando Hikdy até a sala do editor. A entrada de Hildy apresenta muitos dados sobre a personagem: nota-se que ela se sente muito à vontade nesse espaço; ela fala com todos, todos a saúdam com simpatia e amizade, dando a perceber que ela é muito querida na redação. A troca de poucas palavras com os colegas e com o noivo deixa também perceber que ela tem senso de humor, é rápida de raciocínio, muito dinâmica e irônica. O noivo, já se percebeu, é lento, ingênuo.

Ela surpreende Burns na sua sala, enquanto um empregado lhe faz a barba. Percebe-se que esse é um jornalista de corpo e alma – sequer vai em casa, donde sua barba ser feita na própria sala onde trabalha. Também não é dotado de muito caráter: faz qualquer negócio para conseguir uma manchete, e trata mal os subalternos; e não é nada bem educado – acende seu cigarro sem oferecer um à dama. A cena entre os dois aciona as duas tramas: de um lado o romance, já que ele reclama do divórcio e parece querê-la de volta. E sua volta ao jornalismo: ficamos sabendo do caso Williams, de seu crime e condenação à morte; que o jornal está envolvido no caso e que é contra a pena de morte; e que precisa de uma entrevista com o prisioneiro, na qual ficará demonstrado seu  desequilíbrio, para opô-la aos laudos psiquiátricos que o identificam como são. Todos os elementos da história estão dados para que a narrativa se encadeie.

Há uma segunda cena, no restaurante, na qual Burns conseguirá colocar Hildy no caso, criando as condições para que a narrativa engrene. A cena mostra o entendimento total entre editor e repórter, as investidas desonestas de Burns, e a ingenuidade do noivo que cai em todos os truques inventados pelo editor. Editor e repórter se entendem quase sem palavras: ambos pedem a mesma comida ao garçon; ambos fumam, enquanto o noivo não fuma e não consegue sentar-se ao lado de Hildy, lugar tomado pelo editor.

A cena que quero focalizar é aquela em que Hildy entrevista Williams para saber a causa de seu crime. Como a finalidade da entrevista é descobrir porque Williams matou o guarda, trata-se da busca de uma causa fundante, que reúne todos os fios da trama – aquela que não apenas vai esclarecer o crime, livrar  o prisioneiro da morte, mas permitir que Burns obtenha Hildy de volta. Por causa desse conjunto de fatores, esta cena foi analisada por David Bordwell como um exemplo de modelo estilístico e como um desnudamento dos princípios da causalidade clássica. Não foi por acaso que o crítico Louis Marcorelles chamou esse  de “filme americano por excelência”: classicismo prístino, narrativa disfarçada, tramas interdependentes de linhas de romance não romance.

O buraco que existe na história de Williams é que não há causa determinada para seu crime. Os personagens positivos acham que ele estava temporariamente insano. Burns acha que ele matou porque acabara de perder e o emprego. Os repórteres acham que ele não sabia o que estava fazendo. O próprio Williams diz que não tinha intenção de matar. Hildy precisa descobrir um elo causal para o crime, para fazer a matéria e ganhar o dinheiro de Walter Burns. Como ela sabe que W. vagou pelo parque ao perder o emprego, e que lá havia pregadores, ela tenta arrancar dele alguma frase ouvida ali. A única coisa de que ele se lembra é de “produção para uso”. Rapidamente ela se apropria da frase, e o convence de que usou a arma porque uma “arma é produzida para ser usada”. Assim ela estabelece a cadeia causal: a falta de emprego, o vagar no parque, ouvir a frase, lembrá-la e agir de acordo com essa lembrança. O trabalho do jornalista: construir a história no sentido clássico encontra aqui o trabalho do cinema ao contar a história. Hildy preenche o vazio, o que faltava para explicar o crime; liga uma cadeia causal (o crime) à outra (a condenação à morte); sublinha o deadline; introduz a subtrama ao mencionar o romance com Molly.

Bordwell diz que a narrativa de Hildy duplica estruturalmente e microcosmicamente as convenções da construção clássica. O filme mostra que a história que Hildy escreveu é um pretexto, como o próprio Earl é um pretexto para o jornal; este é usado por Walter para condenar a administração corrupta do prefeito e obter Hildy de volta. Hildy por sua vez usa Earl como pretexto para pegar o dinheiro de Walter. “Produção para uso” como causa do crime é uma invenção de Hildy. Além disso a reportagem nem é publicada: Hildy a rasga numa briga com Walter. Na verdade o impulso psicológico atribuído a Earl visa apenas motivar psicologicamente e composicionalmente a história inventada por Hildy. Mas esta história deixa a nu, ao mesmo tempo, o que é a narração do filme, mostrando a arbitrariedade da causalidade clássica em geral. Todos os elementos da narrativa são, como a arma de Earl, produzidos para usar.

Kane

No sentido oposto, para abordar a intervenção do jornalista em favor de uma interrogação ou de uma crítica da narrativa passaremos a considerar a narrativa não mais do ponto de vista do circuito estímulo-ação, ou da cadeia sensório-motora. Em vez de acionar indivíduos bem definidos psicologicamente, e se fundar na causalidade, a narrativa será considerada quando diz respeito à relação sujeito-objeto e ao desenvolvimento dessa relação. Deleuze chama o primeiro ponto de vista de “narração” e o segundo de “narrativa”.

A partir de agora não é mais o esquema ação-reação que nos interessa, mas a “adequação” sujeito-objeto, ou seja, como esses dois se põem em relação. No cinema isto é diferente da literatura onde pode haver um narrador que vê todos os personagems e domina toda a história – o  narrador soberano omnisciente -, ou um narrador que assume seu ponto de vista e fala desse lugar. Há várias combinações desses dois esquemas, mas não entraremos nesses detalhes agora.

No cinema as coisas são diferentes porque existe a câmera, o objetivo é o que a câmera vê; e o subjetivo é o que o personagem vê. Ora, acontece que a câmera tem de ver também o personagem que vê. O que vai gerar a seguinte situação: é um mesmo personagem que ora é visto (objetivo), ora vê (subjetivo). Mas é a mesma câmera que dá o personagem que visto e o que ele vê. Como então diferenciar as duas coisas? O cinema desenvolveu alguns recursos para isso, de modo que o espectador possa saber quando o filme passa de um ao outro. Desse modo de considerar, a narrativa no cinema é o desenvolvimento de dois tipos de imagens: subjetivas e objetivas e de sua relação complexa que pode ir até ao antagonismo, mas deve se resolver numa identidade do tipo eu = eu, isto é,

Identidade do personagem visto = identidade do personagem que vê

Identidade do cineasta-câmera, que vê o personagem e o que o personagem vê.

Esta identidade passa por muitas tribulações que representam o falso, mas acaba por se afirmar por si mesma, constituindo a verdade da narrativa; é assim que “acreditamos’ nela. O filme começa com a distinção dos dois tipos de imagem (subjetiva e objetiva), e acaba com a sua identificação, sua identidade reconhecida. As variações desse esquema são infinitas, porque a distinção, tanto quanto a  identidade sintética podem ser estabelecidas de várias maneiras. Em todo caso, essas são as condições de base do cinema, do ponto de vista da veracidade de qualquer narrativa possível.

Mas há um outro tipo de narrativa que põe em questão a distinção entre objetivo e subjetivo, mas também sua identificação: isto é ficamos sem saber  o que é objetivo e o que é subjetivo na história contada. Este tipo de narrativa faz a crítica da veracidade da narrativa. O filme que inaugura essa crítica é, justamente, um filme que se passa no meio de jornalistas, que conta a vida de um grande magnata da imprensa. E não só isso: ele conta a história de uma reportagem, seguindo o repórter que vai tentar fazer a matéria sobre esse homem quando ele morre. Logo, a crítica da narrativa usa justamente o recurso de uma reportagem, o filme põe em questão o que é contar uma história por meio da busca da verdade, da reportagem  sobre Kane.

O filme mostra o repórter fazendo suas entrevistas com as pessoas que conheceram Kane, e à medida em que elas falam a distinção entre imagens subjetivas e objetivas tende a desaparecer no que cada um dos entrevistados viu, sem que se chegue à identidade do personagem. Lembremos que a primeira e a última imagens do filme são o aviso de “Proibida a entrada” na porta da propriedade de Kane.

O filme começa com a morte de Kane, de quem vemos apenas o vulto na cama e os lábios que pronunciam “rosebud” – a palavra enigma que o filme procurará elucidar. Welles passa desse murmúrio, dessa palavra única, ao excesso e à tonitroância do obituário, no jornal da tela “News on the march”. Welles usa a certeza com que se fala nesse obituário, insiste nas afirmações tonitroantes para opô-lo às incertezas que vão se acumulando à medida que o jornalista avança na sua investigação.

03.22 – 19.13.

Comentário do obituário.

Voz tonitroante, voz de Deus, que realça o caráter grandioso, extraordinário e até exótico do personagem. Ele já é apresentado por meio de um clichê: o poderoso KublaKan que fez construir um palácio para si mesmo. O obituário tem forma familiar: caracteriza-se pela enumeração das coisas. Tudo são números: valores das casas, número de jornais, a grande rede, mas também enumeração dos objetos de arte, dos bichos, tudo com seus valaores.

O documentário procura realçar contrastes: a origem humilde oposta ao grande grupo de comunicação que Kane erigiu; a acusação de “comunista” e a acusação de “fascita”. O poderoso milionário e o fim de seu império com a depressão de 29. Finalmente, a morte como o fim desses contrastes e opostos.

Após a exibição do documentário para o editor, a crítica deste é que “falta um ângulo” ao filme, isto é, um “ponto de vista”. Desde já se introduz o elemento subjetivo, porque o ponto de vista supõe um determinado olhar. E o olhar escolhido é a palavra “rosebud” como o ângulo por meio do qual toda a vida de Kane será olhada.

Voltemos às entrevistas:

A entrevista é o instrumento do jornalista para descobrir a verdade. Em Kane temos três entrevistas principais: Bernstein, Leland e Susan. Há ainda outra fonte importante, o banqueiro Thatcher que educou Kane, mas este já morreu e não pode, portanto, falar. O jornalista tem acesso à sua fala por meio de seus arquivos. E temos ainda o mordomo, que ao final do filme também oferece sua entrevista a troco de dinheiro. Como se trata de uma entrevista “vendida”, ela parece suspeita – isto é, pode não ser exatamente “verdadeira” – e o jornalista acha o negócio pouco vantajoso.

As entrevistas são apresentadas segundo uma gradação: começa-se por uma recusa da entrevista (Susan não quer falar e nem tem as condições idéias para a entrevista pois está bêbada e sem auto-contrôle). Termina-se pelo “oferecimento” da entrevista: o mordomo “se oferece” para explicar rosebud, põe um preço, e o jornalista não aceita. Esta verdade “vendida” não lhe parece tão valiosa ou digna de confiança.

Entre esses dois extremos temos Thatcher, Bernstein e Leland. Cada um desses relatos será marcado por um “tom” afetivo, isto é, pelo tipo de afeto que os depoentes tinham por Kane. Esse tom caracteriza cada relato, mas o põe, ao mesmo tempo, sob suspeita. Pois não podemos confiar inteiramente na versão de cada história se sabemos que a narrativa do depoente é movida por um afeto tão claro.

Thatcher – 17.30 – 19.13

A primeira – não uma entrevista, mas a leitura dos arquivos do banqueiro – é marcada pela frieza de um homem das finanças. O ambiente, os funcionários, o diálogo sublinham esta frieza e contribuem para mostrar a qualidade de relação que Thatcher estabeleceu com Kane. Trata-se de um relatório “objetivo” de um homem de negócios, mas sua irritação com a falta de seriedade de Kane dá o tom de sua “fala”.

Bernstein – 30.25 – 39.39

Bernstein é o secretário particular de Kane – o homem fiel, que estava lá desde “antes” do princípio de tudo. De origem social mais baixa, é um serviçar humilde: não tem críticas a Kane, e sua devoção é que “colore” o depoimento. Mostra Kane como o home que modernizou o jornal. Vemos que Kane enveredou pelo jornalismo marron, que seus métodos são excusos, mas tudo isso não é narrado na forma da crítica ou do moralismo. Vemos que Kane escolheu um jornalismo rápido, simples e divertido – uma mistura de política e escândalo.

Não se trata de uma crítica, porque para Bernstein, Kane é o patrão e o proprietário do jornal, e pode decidir fazer o que quiser com ele. Assim como pode comprar todas as obras de arte do mundo, pode orientar como quiser o seu jornal.

Leland – 43.38

É um personagem atormendado. Disso já sabemos desde a sua apresentação por Bernstein. Mais complexo que este último, é de família rica e arruinada; tem de trabalhar para viver. Culto, sofisticado, da mesma classe que Kane, conviveu com a fina flor da sociedade americana, e tem condições de entener Kane melhor. Mas tem o ponto de vista do amigo magoado, ressentido; por isto é o que mais criticará Kane – além de Susan, é claro.

Todos esses depoimentos têm um “tom” afetivo, como dissemos. O que os faz confiáveis como depoimentos, mas menos confiáveis para se chegar à procurada “verdade” sobre Kane. Quanto mais falam, quanto mais gente o reporte houve, mais pontos de vista, mais opiniões, e aumenta a dificuldade de conhecer o homem – ou então fica mais clara a complexidade do personagem.

O fim ; 1.43.08 – 1.46.17

O repórter termina em meio ao acúmulo de objetos indistintos: que reproduz no plano simbólico o acúmulo de dados e histórias sobre Kane e também reproduz, no plano plástico, os quebra-cabeças de Susan. A última pela, rosebud, falta – isto é, ninguém conhece. E quando vemos o que é rosebud, o objeto vira fumaça e desaparece no céu, sendo visto apenas pelo espectador – o mesmo que ouviu “rosebud”. Esta é também uma convenção da narrativa: ninguém viu Kane morrer, mas na sala todos sabem que ele disse essa palavra;ninguém viu o trenó queimar na fogueira, mas o espectador sabe o que foi rosebud.

A dúvida sobre a identidade.

Passemos agora ao item c. do programa, a identidade, quando o personagem do jornalista se presta ao tratamento do tema da dúvida sobre a identidade. O filme trata de um repórter (Locke) em crise profissional e sentimental. Por ocasião de uma viagem à África para realizar um documentário, ele decide se apropriar da identidade de seu companheiro de hotel que morreu subitamente Robertson). Acontece que este é um traficante de armas; o jornalista se vê envolvido numa série de viagens pela Europa onde cruza com supostos fregueses; enquanto isso um colega tenta fazer uma matéria sobre ele (como Kane?), e se vê na sua pista (na pista de Robertson, na verdade), enquanto a esposa também faz o mesmo.

As duas tramas: trabalho e amor, que correm paralelas na narrativa clássica, também estão presentes nesse filme de 1975, um dos mais significativos do chamado “cinema moderno”.Também as entrevistas estão presentes; mas Antonioni usa as entrevistas que o jornalista fez ao longo de sua carreira e não entrevistas “sobre” ele. E delas se vale para demonstrar a crise profissional do jornalista. Tanto a crise profissional quanto a crise sentimental – o fim do casamento com Rachel – compõem o quadro de um personagem em crise, em crise de identidade, que quer fugir da sua vida “tornando-se um outro”.

1ª cena –

0.07.00 – 0.12.07

apresentação do jornalista.

É bem diferente do que nos acostumamos a ver nos filmes de jornalista, nos quais uma legenda viria se sobrepor à cena indicando o nome do lugar e a data. Aqui tudo é indefinido. Não há uma palavra, para dar uma pista do lugar. Sabemos que é a África, mas não sabemos onde. Não sabemos por que o jornalista está lá, nem o que foi fazer.

Percebemos que ele está ali a trabalho, que arranjou alguém para guiá-lo, mas não sabemos o que está buscando, nem por que. Sabemos que há uma troca, ele dá o cigarro pela informação, por exemplo. E logo vemos que há gente armada, que se trata de algo ligado a guerrilha, e que o guia foge. Vemos que seu trabalho foi inviabilizado. Ele volta para o carro e atola na areia. Não pode mais avançar de jeito nenhum. Na há ninguém, nada, ele nem pode pedir ajuda. E há a passagem do homem no camelo, como uma figura que anuncia algo, ou como a entrada no desconhecido. A partir de agora ele não controla mais nada: e vai dizer que “aceita” esse destino. Suas palavras, ao bater com a pá nos pneus do jipe imobilizado são: OK, I don´t care.

Subjetivo/objetivo

Notemos que essas imagens não são propriamente “objetivas”, ou seja, não é um olhar da câmera que mostra esta cena.´Há dados suficientes para se deduzir que é um jornalista: sua roupa ocidental num deserto, seu jipe, seu equipamento que veremos depois, o fato de estar, aparentemente pedindo informação e procurando algo. Mas não há o que habitualmente vemos nesse tipo de filme: identificação do lugar, da época – em geral escritos sobre o plano. Também não sabemos o que ele procura: quase não há diálogos, as cenas são mudas e com raros gestos. Também não é um plano propriamente “subjetivo”; não é o olhar de Locke que estamos esposando. Não é uma câmera subjetiva porque não temos aquele jogo em que se vê o personagem e, em seguida, o que ele está vendo. Trata-se de uma espécie de combinação dos dois: o que Pasolini chamou de subjetiva indireta livre. Vemos a paisagem, a desolação, os personagens, a falta de saída como se pudéssemos ver com Locke, mas não propriamente com os olhos dele. Como se víssemos a cena com o sentimento, o afeto que Locke prova ao estar ali. Vemos o sentimento dele no olhar que a câmera deposita sobre o espaço. E como se trata da abertura do filme, já sabemos que toda a narrativa vai ser assim, que vamos ver como ele vê, junto com ele, com a “cor” ou o “tom” que ele imprime no mundo.

Há dados objetivos que conhecemos de outros filmes de jornalista, mas eles estão quase como que sugeridos dentro de um “clima” que não é familiar nos filmes de jornalista. Por exemplo: ele já começa “pagando” pela informação. Dois personagens lhe pedem cigarros antes de falar com ele, de lhe dar a suposta informação. Há também a série de perguntas que ele faz ao seu guia sobre a guerrilha; perguntas objetivas, das quais o guia se esquiva, dizendo que lá no campo da guerrilha lhe dirão tudo. Além do ar de desolação, há um clima de mistério na cena: ninguém fala, o jornalista não obtém respostas às suas perguntas, como se todos estivessem lhe escondendo algo. Claro que logo ficaremos sabendo que se trata da guerrilha, e podemos deduzir que o assunto é proibido naquelas paragens – ou, pelo menos, perigoso. Mesmo assim a cena é exatamente o contrário do que estamos acostumados a ver nos filmes de jornalista, onde o personagem chega decidindo tudo, perguntando e obtendo respostas, tomando decisões, fazendo avançar a coisa – ou seja, desencadeando a ação.

Vejamos um plano de um outro filme, só para mostrar como nesse outros filmes o lugar e o tempo são identificados imediatamente. Sob fogo cerrado.

Aqui, ao contrário, ele chega pedindo e não obtém o que quer. Há uma espécie de inação: ele não pode continuar a viagem porque o guia foge, seu carro se atola na areia e ele não consegue tirar. Isto é: ele fica preso, imobilizado, sem ação. E nesta cena ele literalmente “se rende” – aceita as circunstâncias adversas, e “desiste” da reportagem, diz “tudo bem, eu não me importo”. Então esta cena mostra um jornalista que está desistindo de ser jornalista. Ainda não sabemos porque. É claro que tudo foi desencorajador, nada deu certo, mas o “tom” da cena toda sugere que algo se passa no íntimo do personagem, algo que faz com que ele se desinteresse, desista. É isto que o filme vai mostrar em algumas cenas. Tirando a primeira cena, que veremos a seguir, as outras são cenas de entrevista novamente.

Cena com Robertson

0.12.07 – 0.26.53

Esta cena se passa depois que ele chega no modesto hotel no deserto. Entra no quarto, quer tomar um banho, vai no vizinho e descobre que ele está na cama, morto. É a cena em que ele troca de identidade com o morto, veste suas roupas, falsifica o seu passaporte e se faz passar pelo outro na portaria do hotel. O diálogo entre os dois, mostrado em flash back, vai indicar que Locke tem uma ânsia de ver o mundo com outros olhos, que é o que ele tentará fazer ao assumir outra identidade.

Há dois momentos importantes no diálogo: quando Robertson diz que “aqui é muito bonita, tem uma calma, uma espécie de espera”.Locke responde que prefere homens a paisagens; e Robertson lhe diz que há homens também no deserto. Essa idéia de um lugar calmo, onde há uma espera já aparecera em Blow up, e estava ligada à expectativa de que algo viesse a acontecer. Ou melhor, era uma calma que o fotógrafo percebia, mas suspeitava, tinha a intuição de que algo ia se passar – tanto que começa a fotografar em seguida. E o que acontecia era a morte. Aqui também a espera está relacionada com a morte – pois Robertson morrerá logo em seguida.

O outro momento é quando R. diz que vive “o dia-a-dia” e sugere que com Locke “é diferente”, como se um jornalista estivesse sempre pronto para grandes acontecimentos. L. acha que não é bem assim, que não vemos e nem o jornalista vê o novo porque “traduzimos tudo para nossos códigos, somos seres de hábitos”. É um visão pouco corriqueira do jornalista como um “ser de hábito”, incapaz de ver o novo, que apenas vê a repetição (repetição que será retomada no filme no diálogo com o velho, que dirá “é sempre a mesma história” quando vê as crianças, As crianças não são o novo, mas a repetição dos adultos, a mesma trajetória para a morte).

Isto é o que está no diálogo, mas vejamos as imagens. Enquando L se movimenta no quarto, descobre o morto, troca as identidades e ai temos um flash back vertiginoso, que permite ver o diálogo entre os dois homens, quando eles se encontraram pela primeira vez. Toda a cena no quarto pula vários tempos sem corte: a câmera sobre para o ventilador deixando L. com uma camisa, e desce sobre ele já com a camisa de R., por exemplo. Mas o mais sensacional é o do diálogo, pois é um flach back sem cortes, que começa com o som do diálogo enquanto L. falsifica o passaporte, mas a câmera vai alcançar os dois homens conversando no terraço e só aí percebemos que se trata de um outro tempo. E assim como foi, a câmera volta para o tempo presente. Já vimos como a unidade de espaço e tempo é uma condição da narrativa clássica – e aqui temos um exemplo bem diferente, em que num só espaço cabem tempos diversos.

Ainda no diálogo, quando L. menciona suas dificuldades em trabalhar na África, R. lhe responde que é por causa de seu “objeto”: “você trabalha com coisas frágeis, palavras imagens; eu trabalho com coisas concretas, com mercadorias, e as pessoas reconhecem logo”. A observação de R. diz respeito às atribulações de L. na África, mas pode ser estendida também ao problema que vive o personagem, à sua crise: pois é porque as palavras e as imagens são frágeis que ele abandona o jornalismo, a mulher, tenta viver uma outra vida, desta vez com “coisas concretas”: armas que trazem a morte.

As entrevistas

São duas entrevistas que serão mostradas em flash back, um quando o amigo jornalista de L. e a mulher Rachel se reúnem para fazer o documentário sobre ele; outra que surge das lembranças de L. também em falsch back.

O primeiro flash back é mostrado duas vezes. Trata-se de uma entrevista com um chefe de estado africano, que fala da volta à ordem no seu país, do fim da guerrilha, da paz. Estas imagens estão sendo vistas pelo realizador do documentário quando Rachel chega. Ele fala da vida deles dois, viagens pelo mundo, e nota que ela não está entusiasmada com o documentário. Ela diz que repórteres são todos iguais, que L. não era tão diferente assim. Aí veremos a mesma entrevista com o chefe de estado, como um flash back da mulher.

É muito curioso porque a visão crítica do que faz o jornalista virá primeiro do olhar da mulher. Vemos a “cena” da entrevista, que nos dá dados muito mais interessantes. A entrevista era um plano fechado do rosto do chefe de estado falando. O flash back mostra o jardim, os jornalistas com sua parafernárlia – Câmera, micofones, etc – o chefe de estado tomando seu lugar e, ao fundo, guardas armados espalhados pelo jardim. Esta presença armada que vai desmentir as palavras do chefe é mostrada numa panorâmica lateral, longa, plano subjetivo da mulher, que caminha também na mesma direção enquanto as palavras do chefe soam. A cena mostra literalmente o que “há por trás” de uma entrevista; quando se mostra toda a situação, e não apenas o rosto do entrevistado, muitas coisas surgem que podem até contestar as suas palavras. Mais uma vez Antonioni brinca com o tempo: aqui o flash back não se dá propriamente no mesmo espaço, porque a cena começa com Rachel falando com o outro jornalista. Mas ele volta ao mesmo espaço, porque o flash back retoma a mesma entrevista que o jornalista estava vendo, e mostra como que o seu avesso. Desta vez o recurso é também ligado ao espaço: Enquanto Rachel caminha, podemos ver o conjunto da cena; é a pano que permite ver toda a cena.

Em seguida há um diálogo no carro, e Rachel censura L. de fazer muitas concessões. Ele diz que as coisas são assim; ela diz que não gosta de vê-lo ceder. E ele diz: “então por que você veio?” E já entendemos que as coisas não estão muito boas entre os dois, e que o jornalismo que ele pratica é uma das razões.

A segunda entrevista – 1.11.14 – 1.18.14

Este é um flash back de L. mais para o final do filme. Ele está conversando com a moça e ela comentando sobre as pessoas que ele deve ver da agenda de R. Surge Daisy, e L. diz que é um homem. Aí entra??????????? O flash back.

É mais uma entrevista com um africano; agora um xamã que viveu na Europa e está de volta ao seu país. A câmera está sobre o seu rosto, como na outra entrevista. Licke lhe faz perguntas sobre a questão da identidade, justamente. Como ele se sente ao ter vivido na Europa, se na volta não muda sua visão de sua cultura e hábitos. O homem lhe responde que há respostas satisfatórias para todas essas perguntas, mas que ele não pode aprender nada com elas. E diz que as perguntas dizem mais sobre L. do que suas respostas poderiam dizer sobre ele mesmo. L. diz que foi sincero, o outro diz que está sendo honesto. Em seguida ele pega a câmera e vira-a para L. que parece surpreso e embaraçado com a mudança de papéis – ou melhor, não é uma mudança de papéis porque L. não será entrevistado. É uma mudança de perspectiva. Em vez do jornalista olhar, ele passa a ser olhado. E aí, o que é que se vê?

O que L. faz ao mudar de identidade é buscar uma mudança de perspectiva. Não no sentido de que ele vai olhar do lugar de R. mas de que ele vai ser R. e, portanto, o mundo reagirá a ele como reage a R.

Agora passemos ao segundo filme desse tópico, Blow up, no qual em vez de  ser a identidade do sujeito que é colocada em questão, é o objeto (o real) que é posto em dúvida.

Blow up

Não se trata propriamente de um jornalista, mas de um fotógrafo. Mas é um fotógrafo que faz diferentes trabalhos, dentre eles o de documentar, de perseguir a realidade e dar conta dela. Tanto que sua apresentação se dá no momento em que ele deixa um abrigo de velhos, disfarçado, onde fora “roubar” imagens para um livro que está fazendo.

Temos uma apresentação de suas diferentes maneiras de trabalhar: quando fotografa moda, quando cata imagens pelas ruas, no parque.

9.32 – 12.37

A primeira delas é a das fotografias de moda. A cena é de grande frieza: o ambiente é gelado, as manequins são duras, sem expressão, comandadas; ou parecem bonecas que o fotógrafo põe na pose que deseja. O cenário é bem abstrato, geométrico; os rostos são vazios; o fotógrafo é autoritário, tem todo o poder sobre os corpos que ali estão à sua disposição. A cena mostra o caráter antinatural da pose, o modo como ele manipula os corpos, ordena o sorriso, manda relaxar e fechar os olhos quando vai embora.

13.40 – 15.07

Em seguida temos o modo como um outro profissional lida com a realidade. É o pintor. O cenário é bem diferente do primeiro: madeira e tijolos. O pintor lida com a pintura, com a matéria sobre a tela, e não com a realidade diante de seus olhos. Ele diz que é uma confusão, uma mass. E que aos poucos, olhando, descobre algo em que se agarrar: esta perna, por exemplo. E conclui: é como achar uma pista numa história de detetive. O que vemos é que o pintor vive a busca da realidade e que esta é fugidia, se escond; que é preciso descobri-la sob a pintura, ao acaso. Como se a pintura fosse na verdade não o que representa a realidade, mas o que a esconde – e que só depois de uma busca fosse possível acha-la.

Vemos que de uma situação à outra passamos de uma situação de poder: o fotógrafo tem o domínio total de seu objeto, a uma situação de impoder: o pintor sequer busca representar a realidade; só espera que ela lhe surja no meio da mass, da confusão do seu quadro, para nela se agarrar.

O parque

21.02 – 28.02

Agora estamos no exterior, num cenário natural, onde nada foi “preparado” para virar imagem. Nem é mais “roubar imagens” (mas virá a ser), como no abrigo, nem comandar imagens, como com as modelos. A imagem nota o movimento com sutileza: folhas que se mexem, os encontros casuais (figura que passa). É um caminhar ao acaso e, ao mesmo tempo, um olhar que procura. Procura o que? O que atrai o olhar do fotógrafo são os pequenos movimentos: a revoada de pombas. Ou o movimento dos sentimentos, que já pode sar início a uma narrativa: o casal que se enlaça o atrai e ele começa a fotografar – já escondido, isto é, a roubar imagens. Aqui seu olhar se transforma: pórque se antes ele se deixava surpreender pelos movimentos, aqui ele passa a seguir os movimentos, a espiar, a esconder-se para “roubar” imagens.

O jornalismo – 32.37 – 34.15

A cena do parque tem uma interrupção na qual vai entrar o jornalismo, o fotojornalismo. É o encontro com o editor de livros. Aqui ele mostra as fotos que fez no abrigo, e sugere colocar as fotos do parque. É o momento em que ele tenta definir o que o atraiu para fazer as fotos do parque: ele usa a expressão “peaceful”, um lugar tranqüilo – como se esse fosse um lugar “onde nada acontece”. Lembramos do deserto de R., quiet, “uma espécie de espera” – isto é um lugar onde parece que algo vai acontecer. Aqui o que o fotógrafo nota é o não acontecimento, e é este que vai surpreendê-lo. É também nesse diálogo que ele manifesta estar cansado de Londres: isto é, da vida que ali leva, artificial, das mulheres. Mostra seu desejo de uma outra vida, “de ser livre”, se tivesse dinheiro. O editor lhe pergunta: livre como este? E lhe mostra um dos miseráveis do abrigo, opondo à liberdade dada pelo dinheiro a liberdade da falta dele, da falta de tudo, mas do descompromisso com tudo também.

Revelação

0.55.00 – 1.03.21

Nesta cena ele vai revelar as fotos, olhar as fotos reveladas e achar o revólver. Trata-se de uma verdadeira “investigação” da imagem, de um exame detalhado onde se pode perceber que ele segue sua intuição: algo acontece nesse lugar peaceful; o que é? Ele vai buscar isso pela direção dos olhares dos personagens, ou seja, é o olhar “dentro” da imagem que pode esclarecer sua dúvida.

O morto

1.11.40 – 1.15.48

Aqui ele faz nova revelação da zona ampliada para onde o olhar se dirigia; e descobre que há um cadáver escondido atrás dos arbustos. Parece o procedimento do pintor: ele tinha um amontoado de pontos, começou a procurar e achou algo em que se segurar. Como se trata de uma fotografia, uma reprodução de uma imagem que existiu na realidade, ele vai ao parque procurar o cadáver. E o acha.

Então a fotografia agora passa a ser como uma metáfora da busca do real, de uma busca filosófica. Há coisas que nossos olhos não vêm, mas que existem. E que não podemos segurar, deter em nossas mãos. Assim que chegamos ao real, ele desaparece; nós o perdemos assim que o descobrimos.

Esta postura é muito diferente daquela do jornalista que o cinema mostrou. Vejamos uma cena de um fotógrafo de imprensa que pode ser comparada com a nossa cena. É de Sob fogo cerrado, de Roger Spottiswoode, 1983.

É a cena de abertura do filme. Vemos um cenário idílico, uma floresta exuberante, o som dos pássaros, o vento. A cena é longa. O suficiente para que, sem que o plano mude, do meio da floresta se ergam guerrilheiros armados, que começam a se mover. Surge um grupo de militares ????????, os guerrilheiros atacam, e as cenas se imobilizam de tempos em tempos, enquanto ouvimos um clic de máquina fotográfica.

Só aí percebemos que esse era um plano subjetivo de um fotógrafo, que esperava o acontecimento – não por acaso, também a morte. Só que agora tudo se passa num só plano. Em vez de uma investigação, como em Blow up, onde o fotógrafo parte de uma pergunta: o que é isto? o que está acontecendo aqui? e só descobre depois de fazer uma “montagem” de suas fotos, aqui o jornalista descobre a verdade num só plano. Ele sabe que o cenário peaceful é só aparência, e que por trás da aparência há armas, morte. Que ele só tem de esperar para revelar.

4 – O jornalista não é mais aquele ou

Somos todos jornalistas

No meu livro citei uma idéia do escritor  Michael Crichton, na revista Wired, de que o jornalista atual é a forma mais arcaica de produção da informação, comparável à antiga telefonista pela qual o público tinha de passar para obter a comunicação. É verdade que a atividade do jornalista mudou muitíssimo nos últimos vinte anos; mas ao lado dessa reviravolta, que tem muito a ver com os avanços tecnológico e dos métodos de gestão, devemos considerar que a própria multiplicação exponencial da quantidade de informação disponível e a facilidade de acesso inaugurada pelas novas tecnologias tende a fazer de cada um de nós um jornalista.

Basta lembrar como hoje nós estamos familiarizados com a busca da informação na Internet, como boa parte das nossas atividades passa por esse canal, como qualquer criança sabe usar um computador para procurar ali a informação de que necessita, para ter uma idéia de como mudou nossa própria relação com a informação – ou seja, como o estatuto da informação foi transformado no mundo contemporâneo. E não é só esse aspecto que mudou na nossa vida. Também a apropriação das tecnologias da informação – computador e internet – pelo público tem criado novos padrões de comportamento, novas maneiras de viver e de conviver que nos tornam muito familiarizados com práticas antes reservadas aos jornalistas: basta lembrar como os jovens se relacionam via Orkut, como a Internet se presta ao estabelecimento de um novo tipo de relação entre os seres humanos, à distância. Assim, não foi só a tarefa ou a prática do jornalista que foi modificada nos últimos vinte anos; na verdade ele perdeu o seu antigo monopólio da informação, e não o perdeu propriamente para outros profissionais, mas para o próprio público, que chamou para si muito da atividade que antigamente mobilizava o profissional de imprensa.

Foi nesse sentido que, em 1997, chamei meu livro de O último jornalista. Na verdade ele foi escrito ao longo dos anos 90, quando as transformações do trabalho jornalístico já eram mais que perceptíveis, bastante evidentes. Mas a grande transformação que viria a atingir o comportamento de todos nós ainda não acontecera, donde eu poder hoje acrescentar à idéia de um último jornalista, a frase “somos todos jornalistas”.

Vejamos num filme ainda “de gênero”, feito para a televisão, como o trabalho do jornalista  – especialmente do repórter jornalístico – se transformou.

Max Headroom, 1985

O repórter Edson Carter inicia uma investigação: sua Rede 23 acaba de inventar os blipverts – uma tipo de publicidade na qual a multiplicação acelerada de imagens em tempo reduzido impede os telespectadores de mudarem de canal na hora dos anúncios publicitários. Alguns dos telespectadores submetidos a essas imagens simplesmente explodem, o que acaba colocando o repórter na pista de misteriosos incêndios que eclodem na cidade.

Antes é bom descrever qual é o mundo em que vive esse jornalista – que chamei de “último”. Potentes redes de televisão controlam audiências mundiais, que são permanentemente avaliadas em suas mínimas oscilações. Trancada em seus imensos prédios, essa imensa população-refém tem acesso, através do vídeo, a uma gama complexa de serviços e informações. Todo o tipo de informação passa pelas telas das televisões e dos computadores: da consulta médica ao controle dos acidentes de trânsito ou à abertura da entrada dos prédios, tudo implica no uso e domínio da tecnologia de produção e reprodução de imagens e dados.

O que não é dado, não pode ser tratado e mostrada numa tela tende a ser desprezado. Por isso, do lado de fora dos prédios, a cidade apodrece, os moradores de rua vivem em meio ao lixo, as ruas são um perigo a ser evitado. O jornalista também deve evitar o perigo das ruas. Seu equipamento é seu segundo corpo, o que lhe permite não apenas o acesso aos fatos, mas a sua proteção quando sai em reportagem. Nessa sociedade em que a tecnologia chegou a tal ponto de desenvolvimento, o repórter não se serve mais de sua visão direta. Ele se guia pela visão das diferentes imagens postas ao seu alcane – seja a da tela de tv, seja a da tela do computador. Diferentemente do jornalista tradicional, que tem na percepção direta o seu maior trunfo, ele não precisa e não deve mais entrar em contato direto com as coisas e os fatos; deve percebê-los a partir das imagens que ele mesmo fabrica ou que outros obtêm em seu benefício.

Se esta tecnologia abre um amplo campo de ação para o jornalista, ela não lhe permite mais trabalhar sozinho. Na sede da estação, um controlador ligado permanentemente ao computador guia seus passos, manipulando uma quantidade fabulosa de dados. Entrar num prédio, virar à esquerda ou à direita, tomar um elevador são decisões que dependem do cruzamento de inúmeros dados, complexas demais para serem deixadas ao seu tirocínio.

Vamos assistir à cena em que o repórter entra escondido na própria sede de sua rede para procurar pistas. Ele é guiado pela sua controladora. Está à procura de provas, de um vídeo que conteria as imagens ligadas aos incêndios. Ela orienta seus passos; ele encontra o vídeo na sala do pesquisador da rede, assiste às imagens e se prepara para fugir. O jovem pesquisador entra no sistema e dá início a um embate, via teclado e tela, com a controladora para impedir sua fuga. Ele contratou dois assassinos para pegar o repórter, e esses entram no prédio no encalço do jornalista. Carter tenta fugir pelo elevador, o pesquisador faz o elevador subir de volta ao andar onde estão os assassinos e cria-se uma cena de perseguição tradicional. Ele consegue descer ao subsolo no elevador comandado pela controladora, pega a moto dos bandidos e vai fugir; pelo seu computador o jovem pesquisador aciona uma prancha e acaba conseguindo atirar o repórter para fora da moto.

O que esta cena mostra é a mudança de patamar do trabalho do jornalista a partir do avanço tecnológico. Como se trata de um filme dentro do gênero, o jornalista é o herói, vai descobrir a verdade e revela-la contra a direção da rede. Mas o que se pode ver por trás dessa construção tradicional é o fim da ação do jornalista – tal como ela sempre se deu e foi mostrada no cinema. Pois aqui ele não se serve de sua percepção, que se tornou obsoleta num sistema tão complexo cuja base são os dados, a informação digital. Como não lhe basta olhar para descobrir a verdade, ele trabalha junto com alguém que olha por ele – o controlador. Aliás, o filme começa com um conflito entre Carter e o seu controlador, que o deixou sem informação na rua, onde ele corre risco de vida. Carter o demite e recebe outro controlador – desta vez uma mulher. É a controladora que verá o espaço para o repórter. Ela detectará os perigos, achará as saídas, as rotas de fuga; usará de todo o seu conhecimento digital para descobrir o código de entrada no prédio, mas também de sua intuição (feminina) para descobrir, por exemplo, onde o garoto esconde suas fitas de vídeo.

Também é a controladora que tomará as decisões pelo jornalista. A que horas deixar o prédio, como, por que saída, tudo isto escapa ao repórter, que no entanto está no local; e entra no âmbito das atribuições da controladora que, apesar de não se encontrar no mesmo espaço, tem uma visão total dele por meio da conexão de seu computador com as câmeras de vigilância do prédio. A perícia para lidar com as situações, a perspicácia para perceber as oportunidades de ação, que antes eram qualidades do jornalista, agora são atributos da controladora. Também cabe a ela decidir sobre a oportunidade e o modo de agir – subtraindo ao jornalista o seu poder de ação, atributo maior de sua prática.

A percepção não é, pois, nesse mundo, um atributo do jornalista. Ela é gerada pelas máquinas e não tem sede num olhar humano. Assim como não há mais um centro da percepção, não há mais unidade do objeto, ou do espaço percebido. O espaço que surge na tela do computador não é mais o espaço transparente, inteiro, iluminado. Em vez de uma visibilidade total do espaço, ou da sociedade, esse sistema cria uma visibilidade pontual, milimétrica, que ilumina zonas de interesse imediato, deixando na sombra o que não interessa. Não estamos mais no reino da transparência social e da iluminação absoluta do espaço, que nos dá a totalidade e dá lugar à formulação da noção de opinião pública como a sociedade que se torna visível, inteiramente visível. Em vez disso nos encontramos sob uma iluminação intermitente ou espasmódica, que recai sobre determinados recantos da sociedade em função de conjunções de interesses e de circunstâncias. No mundo de Max Headroom as zonas iluminadas não recobrem mais a opinião pública, mas o espaço do mercado, o espaço compartimentado do mercado – e é em relação a esse espaço que o repórter tem de adequar sua atuação.

O filme faz uma demonstração de vários modos de aproximação com os diferentes espaços que se inspira na técnica militar: conquista do espaço – na primeira cena o repórter compete com seus colegas numa cobertura, competição que se repete num outro plano entre as redes, que competem entre si pela audiência; prospecção: caso do diálogo sobre os blipverts de dois dirigentes no banheiro da rede – diálogo captado pela controladora e passado para o repórter como sua primeira pista; vigilância ou defesa: como o caso que vimos do alojamento do menino pesquisador, assediado pelo repórter e defendido pelos dois bandidos.

Stella Senra

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