Genciana amarela, genciana azul – Tarrafal e o estatuto da palavra no cinema de Pedro Costa

Resumo:

O texto propõe uma abordagem de Tarrafal , de Pedro Costa, com o objetivo de focalizar o estatuto da palavra no cinema do diretor. A análise considera que a partir de No quarto de Vanda, quando passa a trabalhar com os imigrantes caboverdianos em Lisboa, a palavra passa a ter um papel central na obra de Pedro Costa. Esse papel ganha maior complexidade e mais definição em Juventude em Marcha, cujos diálogos mesclam passado e presente, e onde relato do cotidiano, memórias e lendas se equivalem; Tarrafal dá continuidade a esse procedimento, sendo o estatuto da palavra enriquecido ainda com a integração da palavra escrita.

Ainsi le promeneur, des montagnes escarpées

ne rapporte pas une poignée de terre,

mais um mot, mot choisi, mot pur:

gentiane jaune, gentiane bleue.

Peut-être est-ce pour cela que nous sommes ici,

pour dire, dire: “maison”, “pont”, “fontaine”, portail”, “cruche”,

“l´arbre et ses fruits”, “la fenêtre”…

Au plus pour dire: “colonne”, “tour”…

Mais pour dire – comprends-moi- ô dire si bien,

que jamais les choses n´eussent, au coeur d´elles mêmes,

osé rêver être ainsi.

 

Rainer Maria Rilke[1]

 

Sometimes a single word can kill. I don´t know if it can save but a single word can do some good when it is well spoken, well-crafted, well-thought, and delivered at just the right moment.

Pedro Costa[2]

 

Desde que o diretor Pedro Costa encontrou a comunidade de imigrantes caboverdianos estabelecida em Portugal, a palavra passa a ocupar um lugar central no seu cinema. É verdade que, desde Ossos (1999), não são mais atores que estão em cena; quem fala no filme já são esses imigrantes cujas vidas o diretor passa a retratar [3]. No entanto, se a palavra parece ganhar estatuto próprio nos filmes que se seguem, isto não deve ser atribuído a um deslizamento que neles teria sido operado da ficção ao documentário. Pedro Costa não reconhece essa oposição consagrada na história do cinema, nem tampouco revela grande apreço pelo documentário, preferindo reivindicar sua afinidade com o cinema de ficção. Não por acaso, é nesta categoria que destaca os grandes criadores de sua admiração: dentre eles John Ford, Jacques Tourneur, JM Straub e Danièle Huilet, Yasujiro Ozu, Robert Bresson.

 

A partir de No quarto de Vanda (2000), quando o diretor adota a câmera digital de fácil manipulação e um sistema de produção modesto, trata-se de colher diretamente a experiência cotidiana e a voz desses imigrantes estabelecidos em Fontaínhas, bairro da periferia de Lisboa em vias de demolição. Não se pense, porém, que os filmes seguintes haverão de perseguir os procedimentos amiúde empregados pelo documentário contemporâneo, ao tratar dos chamados “excluídos” – essa categoria que o capitalismo instituiu e que o cinema não pára de folclorizar. Desde que se aproximou dos imigrantes africanos, Pedro Costa sempre teve em mente sua condição de vítimas do desenvolvimento do capitalismo contemporâneo que perderam seu lugar, foram desapropriadas de sua experiência, de sua história, de sua linguagem. Mas o diretor nunca os mostrou do ponto de vista da exclusão: seus filmes não apenas recusam o recorte sociológico hoje tão corriqueiro, mas também estão muito distantes do tom de crítica social que costuma acompanhá-los.

 

Pedro Costa estabeleceu laços muito estreitos com a comunidade caboverdiana de Lisboa, o que lhe permitiu definir um método de trabalho particular, que envolve a participação intensa de seus integrantes. Sem dúvida esse convívio desempenha um papel privilegiado na construção de uma obra de grande complexidade, assim como na definição de uma linguagem de extremo rigor e sofisticação; do mesmo modo, essa experiência comum não deixa de contribuir para a definição do estatuto peculiar da palavra que distingue a obra do diretor. Basta lembrar alguns dos recursos mobilizados por Pedro Costa: o extremo rigor que demonstra ao “compor” as cenas, seu respeito aos seus tempos extremamente dilatados, seu modo inusitado de considerar seus “personagens”, de mostrar seu espaço, o modo como o ocupam  – para perceber, se não  a novidade, o caráter único de seu trato com figuras extraídas da chamada “realidade”.

 

É verdade que, ao contrário de uma tendência atualmente forte no campo documental, nesses filmes não se fala muito, e suas (poucas) palavras estão muito distantes do tão prestigiado tom “confessional” praticamente dominante no cinema de nossos dias. Os filmes de Pedro Costa deixam claro que o processo de desapropriação da linguagem pelo qual passam esses imigrantes os condena, seja ao silêncio, seja a uma fala lacunar, rarefeita. No entanto as obras a eles dedicadas estão longe – mais propriamente nos antípodas – daquele cinema que pretende pôr-se “à escuta do outro”, “outro” que, por sua vez, ao falar, “se assumiria” como sujeito.

 

Do mesmo modo, cabe ainda ressaltar, o diretor não está preocupado com o também  prestigiado “resgate da memória” que tem gerado, tanto no cinema quanto na televisão, uma profusão de imagens de grande facilidade. Ao registrar as palavras dos imigrantes, Pedro Costa não está à procura da reconstituição daquela plenitude da fala que o documentário praticamente tem como seu pressuposto, nem tampouco preocupado em “dar a palavra” àqueles que foram dela rechaçados. Com certeza o diretor não ignora seu lugar privilegiado na distribuição social da fala; mas se não pretende falar “por” aqueles a quem esse privilégio foi subtraído, tampouco pretende fazê-los “aceder” a esse lugar.  “Haverá sempre, como nesse filme com o Ventura, um oceano entre eu e ele”, disse Pedro Costa a propósito de Juventude em marcha (2006), seu quinto filme; “eu não poderei jamais passar para o lado dele, eu não saberia atravessar esse oceano, para passar para o lado dele, e nem quero, acho que é mais interessante contar com esse abismo, esse silêncio (grifo meu) de uma outra classe social que não a minha.[4]

 

Pedro Costa gosta da palavra “distância” para definir seu modo de trabalhar com os moradores de Fontaínhas. Por isso, a respeito do seu cinema, em vez de mencionar uma “estética”, ele prefere o termo “ética”, justamente por ser aquele que designa uma postura, o lugar no qual o diretor se coloca em relação aos seus retratados. Na verdade, é uma “distância ética” o que se concretiza nos seus filmes, um afastamento e, ao mesmo tempo, uma aproximação – ou seja, eles inauguram um lugar ao mesmo tempo político e afetivo no qual não “se busca” a comunicação, nem se “encenam” as suas duas instâncias: a “fala” e a “escuta”, mas onde se “põe em cena” uma “fala” de uma ordem muito peculiar, que cabe ainda precisar[5].

 

Dentre os recursos visuais por ele mobilizados que contribuem para “concretizar” tal distância, lembremos que o diretor nunca se “põe” em cena com seus personagens; que  costuma evitar os planos próximos e não gosta de mover sua câmera – escapando à  “naturalidade” tão buscada pelo cinema. Também a estranheza gerada pela longa duração de seus planos fixos, constituídos por uma só tomada em geral feita em espaço confinado e sem contra-planos – uma estratégia que se firma a partir de No quarto de Vanda e os absolve de qualquer simbolismo psicológico – parece acentuar a impressão de uma “reserva” do diretor, qualidade que ele partilha, de resto, com seus também discretos personagens.

 

Do ponto de vista que nos interessa, tal imobilidade parece propiciar as condições ideais para que a palavra venha a “emergir”. No entanto –  pensamos especialmente em Juventude… e nos filmes que se seguem – mais que um espaço de manifestação e acolhida da palavra, no qual esta viria “se alojar” como que “naturalmente”, a imobilidade do plano permite, antes, que a palavra se “desprenda”, que ela se “movimente” de um personagem a outro – já que, malgrado a presença recorrente de dois deles em cena, não se trata propriamente de “diálogo”, nem muito menos de aposta numa “espontaneidade” da fala. A esse propósito, poder-se-ia evocar a noção de “dueto”, com a qual o crítico japonês Tadao Sato qualificou os diálogos dos filmes de Yasujiro Ozu [6] – desde que se entenda a harmonia própria dessa forma musical apenas no sentido do equilíbrio das vozes, e não como uma busca de “entendimento” – como acontece nos filmes do diretor japonês. A tomada única teria assim, como uma de suas funções, captar tais duetos na sua inteireza por assim dizer “sonora”, sem “quebrar” sua harmonia – duetos que, de resto, parecem ser objeto de uma insistente preparação, como num “ensaio musical”[7] . Explica-se assim, também, a ausência de contra-planos no cinema de Pedro Costa – desde que não há propriamente “diálogos” nos seus filmes, e que não se trata, definitivamente, de “comunicação”.

 

Ainda em relação aos recursos visuais que conferem um caráter peculiar à palavra, os analistas já notaram que os olhares de seus personagens nunca se cruzam, nunca são conectados aos objetos que contemplam e se dirigem, sempre, para fora do plano. Com certeza, além de gerar certo “desequilíbrio” (afinal, a direção de olhares no plano não só “acomoda” nosso próprio olhar; ao percorrer as diferentes direções, esse olhar acaba também “delimitando” o espaço – tanto in quanto off, tanto físico quanto diegético), essa dinâmica dos olhares contribui para “suspender” o tempo do plano: se as falas do cinema de Pedro Costa podem se referir tanto ao presente quanto ao passado, tal flutuação temporal não está apenas em relação com a peculiaridade do que é dito; ela se deve também ao fato de que, ao remeter a atenção dos personagens para fora do quadro, sem que o contra-campo jamais “recupere” a continuidade espacial, é como se essas cenas estivessem também “fora do tempo”, ou que pudessem estar “em qualquer tempo”; de fato, as falas desses personagens são desprovidas da “atualidade”, ou mesmo do sentido de “urgência” que caracteriza o documentário, e padecem de uma espécie de “indistinção” temporal.

 

Em Juventude… , assim como em Tarrafal, trata-se quase sempre de dois personagens em cena. Já sabemos que eles não se olham; também – e por razões óbvias – não olham para o espectador. Como no cinema de outros dois diretores, JM Straub e Danièle Huilet, não há plenitude psicológica nos filmes de Pedro Costa, nem tampouco identificação com o personagem.  Tomados por meio de ângulos inusitados, os corpos em geral estão dispostos de modo muito peculiar no espaço, ora lado a lado, ora em diagonal em relação ao espectador, ora um mais ao fundo e outro mais à frente do plano. Essa distribuição pouco comum faz lembrar, de fato, aquela também nada habitual dos filmes de JM Straub-Danièle Huilet. Os dois diretores não apenas colocam seus personagens em posições pouco usuais no plano, mas ainda operam cortes inusitados nas suas figuras, escapando tanto à cumplicidade com o espectador quanto à transparência do registro[8].

Costa também recusa tanto a cumplicidade quanto a transparência – além de escapar, como os dois diretores, à distinção consagrada entre figura e fundo. Malgrado essas afinidades, não se pode dizer que os filmes do diretor português suscitem a mesma impressão que os da dupla Straub-Huilet. Os corpos dos personagens desses dois diretores são intensos, cheios de sensualidade; dotados de uma presença sólida, “telúrica”, eles parecem “fincados” no plano do mesmo modo como estão “fincados” na terra, de onde extraem, de resto, toda a sua força e vigor. Mas enquanto no cinema de Straub-Huillet o “desajuste” das figuras contribui para a forte tensão que atravessa os planos[9], nos filmes de Pedro Costa os planos parecem “distendidos”, “afrouxados”, e nenhuma tensão sustenta as suas figuras.

 

Talvez esta ausência de tensão se deva ao que o crítico Tag Gallagher pôde observar em particular quanto aos personagens de Juventude…: eles são “desincorporados”, notou ele, “como zumbis”, e nunca parecem “completamente aqui”. Com efeito, se o imigrante vive o desenlace com a terra, se o que o caracteriza é justamente seu desenraizamento, os personagens de Pedro Costa não podem primar pela solidez nem pela “consistência” de seus corpos. Destituídos do lugar, de suas relações, de seu modo de viver, eles não desfrutam daquele “domínio do espaço do plano” que os críticos tanto louvam nos corpos que Straub-Huillet põem em cena.

 

Mas não é só esse “domínio do espaço do plano” que falta aos imigrantes retratados por Pedro costa. A partir de Juventude…, quando começam a ser deslocados de Fontaínhas, também sua “ancoragem temporal” passa a se tornar cada vez mais aleatória: ora a cena apresentada parece estar no passado, ora no presente – como se, destituídos do seu lugar, eles estivessem também, de certa forma, “perdidos” no tempo. Como escreveu Gallagher a propósito dessas presenças: “(…) são visitantes. São formas, figuras em composições inacreditavelmente belas”.[10]

 

Essas observações do crítico dizem sempre respeito a Juventude…, que trata da mudança dos imigrantes para novas casas num conjunto habitacional. Lembremos que em Fontaínhas, onde foi feito No quarto de Vanda, eles conseguiram construir um espaço próprio, “cheio de cores e de cheiros”, no qual se mantém um forte “sentido de comunidade”, onde se sustenta um modo próprio de viver que não se restringe aos gestos e atos do cotidiano. As novas moradias dos imigrantes não representam apenas sua desancoragem definitiva de um espaço que ainda era, de certo modo, “deles”, espaço construído pelas suas mãos; elas significam também o fim de uma “idéia de comunidade” que partilha as mesmas experiências, o mesmo modo de viver e de sentir, o mesmo convívio com os entes “mitológicos” que povoam suas lendas.

 

É desse modo de viver, de sentir e de ver que falam os personagens de Pedro Costa; e é do seu desaparecimento, do fim dessa “idéia de uma comunidade” que trata o cinema do diretor.

 

A palavra

 

Esta transformação da experiência cotidiana dos imigrantes, a desapropriação de que são alvo atinge também a sua linguagem, e parece desempenhar papel decisivo na definição do estatuto da palavra no cinema de Pedro Costa. Se Ossos representou uma transição nesse sentido[11], se No quarto de Vanda introduzia a voz dos habitantes de Fontaínhas que falavam de suas vidas, a partir de Juventude em marcha, pode-se dizer que um padrão de relato se define nos filmes de Pedro Costa, padrão que parece qualificar um registro singular da palavra.

 

Com certeza No quarto… já escapava à tão cultuada “espontaneidade”  das falas colhidas na “realidade”, à “objetividade” e à “autenticidade” que lhes são comumente associadas. Mas, tanto em Juventude… quanto em Tarrafal,  elas não apenas passam a ser mais numerosas, mas a constituir pequenos relatos que compõem verdadeiras “cenas” – cada plano (fixo) é constituído, na verdade, por uma “cena” –  nas quais comparecem, em pé de igualdade, histórias da vida cotidiana, memórias e até mesmo lendas que compõem uma espécie de “mitologia” da comunidade. Além dessa equiparação dos relatos (que faz com que os próprios relatos do cotidiano, por sua vez, passem a se transformar também numa espécie de “mitologia”), muitas vezes não é possível saber se a cena se dá no presente ou no passado, se os personagens estão vivos ou se já morreram. [12]

 

Costa não costuma discorrer sobre o modo como são criados os diálogos de seus filmes. Sabe-se que ele ensaia muito tempo com seus atores, que filma várias vezes a mesma cena – o que descarta qualquer preocupação com a espontaneidade e sugere, ainda, uma intensa troca entre diretor e “personagens-autores”. O diretor confessa seu pudor em “colocar coisas suas” nesses filmes; no entanto percebe-se que as falas resultam de um lento e custoso trabalho, tanto do diretor quando de seus “atores” a partir da vida cotidiana, de suas reminiscências e do imaginário dessa população que, mesmo não sendo de tradição oral, ainda guarda fortes traços de uma cultura tradicional.

 

Se desde O quarto…, as falas já eram desprovidas daquela “plenitude” que caracteriza a manifestação espontânea, a partir de Juventude… elas parecem ser, mais propriamente, o resultado de uma “construção” de teor poético, construção que resulta, aparentemente, de uma elaboração conjunta. “Construção” é exatamente o termo evocado pelo diretor ao descrever o processo segundo o qual foi concebida a carta que o personagem de Ventura escreve para a mulher. Essa descrição pode ser tomada, na verdade, como indicação de alguns dos parâmetros que parecem reger o trabalho de concepção das falas que partilham Pedro Costa e seus personagens[13].

 

De saída, fica claro que não se trata de “escrever” uma carta “de verdade”, mas de “imaginar” uma carta (“Esta carta imagina (grifo meu) como é que vem a um pedreiro uma declaração de amor”). Tal “método de trabalho” aciona, portanto, tanto o relato do cotidiano quanto a capacidade de “criar”, seja do personagem, seja do diretor. No caso presente, por exemplo, parte-se de uma situação concreta (escrever uma carta de amor), de um personagem concreto (um operário); mas elementos (também concretos) da experiência do diretor vêm integrar o resultado final: assim, as “ligações” que Costa admite ter escrito para dar forma ao texto, por exemplo; ou ainda a inserção de trechos da poesia de Robert Desnos (a evocação desse poeta surrealista francês, aparentemente tão inusitada numa história de imigrantes, parece se dever à relação que o diretor estabelece entre a situação dos imigrantes e a confinação e morte de Desnos num campo de concentração).

 

Também o registro no qual são ditas as frases no cinema de Pedro Costa é muito preciso. Em vez de “confessadas” ou “enunciadas” por seus supostos “autores”, elas são “atribuídas” aos personagens do filme, que as “recitam” – guardando, portanto, também, uma “distância” em relação a elas, de modo a evitar qualquer traço de expressão (marcas do “eu”) que as remeteria a um “indivíduo”, mas também toda operação de generalização que sugeriria uma “enunciação coletiva”.

 

Tag Gallagher observou que os personagens de Costa não recitam, como os de Straub-Huillet, “de modo a nos oferecer uma entrada especial”. É verdade que, nos filmes dos dois diretores – que também não trabalham com atores e vivem no meio de seus escolhidos, como fez Pedro Costa em Fontaínhas –  a textura da voz, o corpo, a dicção são valorizadas para “extrair” o texto à sua literalidade e devolvê-lo à respiração[14]. As frases de Costa, por sua vez, não são “encorpadas”, não têm a vitalidade daquelas ditas pelos personagens de Straub-Huillet. Como observou Gallagher, elas são às vezes sem relevo, emitidas em pequenas explosões, muitas vezes elípticas e inescrutáveis (…). [15]

 

Talvez seja mais apropriado aproximar essas falas do cinema de Robert Bresson ou dos filmes do diretor japonês Yasujiro Ozu. Como Straub-Huillet e Costa, Bresson não trabalhou com atores, e todo o seu esforço foi para eliminar a “expressão” da fala de seus “modelos” – como ele denominava seus escolhidos[16]. Apesar de recusar a “representação”, Bresson não acreditava, tampouco, que a verdade estivesse incrustada nas pessoas vivas e nos objetos reais que empregamos. Para restituir essa “verdade” (le vrai) o diretor criou uma série de procedimentos – dentre eles, um modo muito peculiar de “extrair a voz” de seus modelos.

 

“Submete teus modelos a exercícios de leitura próprios para nivelar as sílabas e suprimir todo efeito pessoal desejado”, aconselhava ele em seu  Notes sur le cinématographe. “O texto uniformizado e regularizado. A expressão que pode passar despercebida (grifo dele) obtida por ralentamentos e acelerações quase insensíveis, e pelo embaciado e pelo brilhante da voz” [17].. As “vozes brancas” de Bresson não eram propriamente “desprovidas de expressão”, mas de “expressão voluntária”. “Colocar sentimentos em seu rosto e nos seus gestos é a arte do ator, é teatro. Não colocar sentimentos em seu rosto e em seus gestos não é o cinematógrafo. Modelos expressivos involuntários (e não inexpressivos voluntários)” – eis o segredo do diretor para chegar ao que Bresson chamava de “pessoa verdadeira” (vraie), muito diferente da “pessoa verídica”.

 

Esse cinema proposto por Bresson partilha com o de Pedro Costa o projeto de eliminar a expressão e de esvaziar a psicologia. Só que em vez de operar a passagem de “atores de teatro” para “modelos do cinematógrafo” – como Bresson – Costa está lidando diretamente com “pessoas naturais”– para usar a terminologia de Bresson – e sua primeira tarefa será, por conseguinte, desfazer a velha crença que confunde pessoa “natural” e “pessoa verdadeira”[18] , o que ele faz transformando suas “pessoas naturais” em “personagens”,  em personagens de suas próprias narrativas.

 

Também o diretor japonês Yasujiro Ozu detestava a “expressão” e instruía seus atores para não “representar”. Ao contrário de Bresson e de Costa, Ozu usou atores – e, quase sempre, os mesmos atores – mas nunca ilustrou a psicologia de seus personagens,  recusando a esse título tanto o close-up quanto a troca de olhares que instituem o simbolismo psicológico. Sabe-se que Ozu também ensaiava seus atores horas a fio, com o objetivo de eliminar qualquer traço de “espontaneidade” da interpretação – aproximando-se, nessa empreitada, de Bresson. Além disso, seus personagens, frequentemente vistos de costas, costumam aparecer lado a lado nas cenas de diálogo, com os olhos voltados para algum objeto – postura que deve sugerir, segundo o crítico Tadao Sato, entendimento mútuo, intimidade.

 

Já observamos que Pedro Costa usa igualmente alguns desses procedimentos que permitem escapar, como o diretor japonês, ao simbolismo psicológico. Sabemos também que suas personagens costumam aparecer em duplas; mas, como não são propriamente “diálogos”, o diretor buscará posturas que, em vez de sugerirem o entendimento têm, antes, o dom de “desfazer” o eventual caráter “natural” desta sua apresentação lado a lado; no mesmo sentido, os olhos das personagens, voltados para fora do plano parecem “desrealizar” o lugar onde elas se encontram, tirando-lhes o “peso” do mundo que, dessa forma, nelas não se “infunde” – como costuma acontecer com as figuras extraídas do chamado “mundo real”.

 

Tarrafal

 

Talvez por ser mais condensado, Tarrafal (17 mn), filme que se segue a Juventude… , parece ser um alvo privilegiado para se abordar a definição do estatuto da fala no cinema de Pedro Costa. Tarrafal é o nome de uma prisão criada pelo regime salazarista em 1936, na Ilha de Santiago, Cabo Verde. Trata-se de um curta-metragem que integrou a obra O estado do mundo (2007), reunião de filmes de vários diretores de diferentes origens. Nesse seu trabalho, Costa retoma alguns dos personagens de Juventude…, dentre eles Ventura; como ali, adota planos fixos que também mostram conversas entre dois personagens.

 

Focalizaremos apenas o primeiro plano do filme, em que mãe e filho evocam dois assuntos aparentemente muito diferentes um do outro: a casa e uma espécie de lenda – a estranha história de uma criatura que sinaliza, por meio do envio de cartas ou de outro tipo de sinal, a morte próxima de uma pessoa cujo sangue ela vem depois sugar.

 

Desde que Pedro Costa passou a trabalhar com os imigrantes africanos, por motivos fáceis de entender, a casa tem sido um tema insistente em seus filmes. Além de tratar da história da demolição do bairro dos imigrantes, em  No quarto…  a casa já aparecia, metonimicamente, no próprio título do filme. Tema central em Juventude…,, que trata da remoção dos imigrantes de Fontaínhas para as brancas residência do conjunto habitacional, nesse filme a mudança da casa é mostrada como  “o fim de certas coisas”: de um certo tipo de espaço, mas também de um modo de vida, de uma ordem de relações (familiares, sentimentais, de amizade), de uma “comunidade”, enfim, com seus hábitos e suas crenças.

 

No cinema de Pedro Costa, as casas de Fontaínhas não representam apenas um modo próprio de viver e de sentir; elas também significam a manutenção da capacidade de “ver” certas “coisas” ou “criaturas” –  que assumirão um papel mais destacado nos filmes do diretor. Já salientamos que, assim como passado e presente se mesclam, e personagens vivos e mortos também não se distinguem, em Juventude… os relatos da vida cotidiana e os relatos míticos dos imigrantes são tratados em pé de igualdade; também notamos que as relações familiares, o trabalho são tão importantes quanto as lendas cultivadas pelos imigrantes  – lendas que, tanto quanto a “vida comunitária”, vão se perder com a demolição do bairro.

As paredes brancas do novo conjunto habitacional sugerem um lugar sem imagens e sem palavras – lugar da ausência de linguagem – de onde a palavra foge e onde não será mais possível “ver as criaturas”, que ainda habitavam as “paredes sujas” das casas de Fontaínhas. Por isso a personagem Bete diz em Juventude…:  “Quando nos derem paredes brancas, pararemos de ver as coisas. Então tudo terá acabado”. É essa sorte de brancura, de “limpeza” (termo que não deixa de ecoar um outro sentido  da expressão – a limpeza étnica) que transformará os  habitantes das novas casas numa espécie de “fantasmas” – donde o ar de “aparições” assumido pelos personagens de Pedro Costa, de seres desprovidos de consistência, como “almas do outro mundo” que vagam perdidas no espaço e no tempo.

 

Como Straub-Huilet fizeram em relação aos gregos ou, mais recentemente, aos camponeses sicilianos, Pedro Costa revela, em seus filmes, sua enorme admiração pelos imigrantes africanos, cujo modo de vida seu cinema não pára de homenagear. Diferentemente dos dois diretores, no entanto, que louvaram a integridade desses povos no passado dos textos literários nos quais se inspiraram, Costa tem o privilégio de ser contemporâneo do objeto de suas homenagens; mas tem, ao mesmo tempo, o ônus de testemunhar a tragédia que representa a ameaça de seu desaparecimento.

 

A casa da palavra

 

Evoquemos brevemente o poema de Rilke, que abre o presente texto. Ao colocar a palavra como desígnio da humanidade, que por meio dela “diz” o mundo, o poeta evoca, em primeiro lugar, as palavras que exprimem a relação com a natureza: assim, de sua caminhada pela montanha o homem não traz um pedaço do mundo “real”, “um punhado de terra”, mas uma palavra: genciana amarela, genciana azul, por meio da qual  pode partilhar com os outros o seu passeio solitário; em seguida vêm as palavras que se referem à ordem da cultura, que designam as coisas feitas pelas próprias mãos do homem – e, dentre essas, a casa é a primeira a ser evocada.

 

Pode-se dizer que a casa é, dentre as coisas elaboradas pelo homem, a que mais se aproxima da palavra: é a mais próxima do seu corpo, aquela que o envolve – assim como a palavra dele “emana”; a casa fixa o homem no lugar, o abriga; do mesmo modo, diz-se que o homem “habita” a linguagem. Não por acaso, a primeira palavra lembrada pelo poeta ao enumerar as coisas feitas pelo homem – a casa – vem a ser o tema do primeiro diálogo que abre Tarrafal.

 

Trata-se de uma conversa entre mãe e filho dentro de uma… casa, mais propriamente de um barraco, provavelmente aquele onde vivem, numa periferia de Portugal. O plano fechado sobre esses personagens já confinados é típico de Pedro Costa; neste filme, trata-se do único plano feito em espaço fechado: em ângulo acentuado, vê-se um canto do barraco, parte de uma mesa, objetos pendurados na parede ao fundo. Os personagens estão sentados, mas dispostos no plano de modo a não ficarem face a face, nem de frente para o espectador.

 

Apesar de seus olhos se cruzarem apenas às vezes, e de relance, essa posição revela algum aconchego: afinal, trata-se de uma conversa entre mãe e filho, do que se poderia chamar de uma “conversa íntima” – não fossem os vários componentes do plano que não o deixam se distinguir dos planos que se seguem. A conversa é sobre as casas da família, abandonadas em Cabo Verde pelos seus donos que imigraram para Portugal. Esta cena rápida, e com apenas dois personagens traz, tanto no plano visual quanto no plano sonoro, uma grande quantidade de dados sobre a vida e o imaginário da comunidade eleita por Pedro Costa.

 

É o filho, de cabelos rasta – e, portanto, já bastante “assimilado” – quem pergunta, revelando sua ignorância da vida da família em Cabo Verde – que, certamente, ele sequer chegou a conhecer. Esse seu desconhecimento é acentuado, no plano da imagem, pela sua posição no fundo do plano, pela obscuridade que cerca sua figura, pela sombra que vela seu rosto e esconde seu olhar. Já se notou que mostrar figuras com o rosto na sombra é uma das características do cinema de Pedro Costa – o que parece contribuir para evitar a exposição excessiva por meio da qual costumam ser “desvelados” os personagens do chamado mundo real. Em relação ao ponto central de nosso interesse – a palavra – essa penumbra contribui ainda para “atenuar” o caráter direto das perguntas do filho que, de resto, têm também um tom peculiar, como uma curiosidade quase infantil – o que vem a confirmar, também, a diferença de “grau” da assimilação dos dois personagens à nova sociedade: desta forma, de um lado temos o desconhecimento do filho sobre a vida da família na terra de origem; de outro, a narrativa da mãe num tom de carinho, de saudade da casa e da terra de origem, sem deixar de se referir ao que ali sofreu.

 

De turbante enrolado na cabeça, a mãe parece de fato menos “integrada” que o filho, e deve pertencer a uma geração anterior de imigrantes. Ela está colocada mais à frente no plano e, de perfil, não tem, como já sabemos, o filho na linha de seu olhar: só às vezes o olha de relance, segundo o ritmo da conversa; na maioria das vezes olha para fora do plano, como quem mira muito longe, no tempo – afinal, é em Cabo Verde que ela pensa e é para esse lugar ausente que se orienta, com a intensidade de seus sentimentos, toda a atenção do plano. O tom de sua fala é muito diferente do de seu filho; respondendo-lhe diretamente, mas ao mesmo tempo falando como se fosse para si mesma, suas palavras se situam entre a resposta e a rememoração, atenuando desse modo a “atualidade” do diálogo.

 

Assim, é pela sua presença no diálogo e pela sua “intensa ausência” na imagem, que Cabo Verde se faz presente na cena. Tanto que o diálogo começa com o tema da “volta”. O filho pergunta à mãe se ela pretende voltar para a sua casa de origem. Ela responde que não, vai construir outra, no terreno da casa de sua mãe. Em seguida ele pergunta pela casa dela, pela do pai, pela do tio. As respostas da mãe revelam algum orgulho pela posse desse bem familiar: a do pai parece ser mais antiga, de pedra; a dela, construída com bons materiais, “custou uma fortuna”, mas parece ter sido habitada por pouco tempo. Mesmo assim, todas parecem ter sido amadas; agora estão vazias, infestadas de ratos e lagartixas. Será que ela quer voltar para lá? Indaga o filho. A mãe nega: para que? Aqui tenho água, luz. Alguém poderia querê-las? insiste ainda ele. Só se for algum infeliz, responde ela, que receber ordem de expulsão e tiver de voltar.

 

Esse curto diálogo tem o dom de descrever toda a trajetória de perdas do imigrante, desde o país de origem à periferia da grande cidade: as casas outrora amadas, e hoje abandonadas degradam, porque não resta ninguém para as querer. Só o último dos imigrantes, o mais infeliz – aquele que for expulso e tiver de voltar – poderá desejá-las; mas, por sua vez, nelas viverá como um “condenado”, como alguém que não tem mais para onde ir. Aqui, onde se passa a conversa, o barraco é precário, os materiais são inapropriados, mas “tem luz e água”. Lá, as casas podem ser de pedra, ter os quartos grandes, mas “só há miséria”. Ninguém mais quer a casa da família, cuja história se encerra com a mãe. O filho já parece pertencer a outro “estrato” do tempo; e para ele esse passado só adquire consistência por meio das palavras, das palavras da mãe.

 

O segundo tema da conversa reúne duas dimensões da vida dos imigrantes, inseparáveis para o cinema de Pedro Costa: a dimensão “mítica” e a dimensão política. Trata-se da história de uma misteriosa criatura que anuncia, por meio de cartas ou de outro tipo de sinal, a morte próxima e inevitável de alguém; após entregar essa mensagem ao destinatário, ela fura um buraco no seu corpo e suga todo o seu sangue.

 

Na dimensão política, essa espécie de lenda ecoa a expulsão dos imigrantes pelo estado português que, também feito por meio de uma carta, é equiparado à drástica condenação que a criatura envia aos seus escolhidos. Agora, parece que o tema da conversa já não é mais a casa; mas é por meio desta, ou do papel que a casa tem na manutenção da lenda que, por sua vez, a dimensão mítica pode se atualizar na vida dos imigrantes.

 

Na verdade a criatura é parte de uma espécie de mitologia dos imigrantes, mitologia que  é erigida em íntima sintonia com seu espaço e seu modo de vida. Desenraizados, eles não se encontram mais no seu próprio ambiente, naquele mesmo lugar onde também nasceram e fizeram proliferar suas lendas; mas, mesmo destituídas desse lugar de origem, essas lendas ainda sobrevivem, e parecem entrar por sua vez em sintonia com as casas onde os imigrantes passaram a morar. Feitas pelas próprias mãos, com materiais impróprios e desviados de seu uso, essas casas são – como já notamos – algo de muito próximo dos corpos dos imigrantes. Lembremos que é nas paredes sujas das casas de Fontaínhas que eles ainda “podem” ver – como disse Bete – as criaturas com as quais sempre conviveram no seu antigo ambiente; enquanto nas paredes brancas do conjunto residencial “tudo estará acabado” porque não será possível “ver mais nada”.

 

Não é de estranhar, portanto, que a conversa entre mãe e filho passe da casa à lenda. Mas ainda há outro aspecto nas palavras da lenda que pode nos interessar: afinal, essa história se refere a um destino anunciado por uma carta. Vale dizer: a lenda contada pela mãe introduz, em Tarrafal, um novo estatuto da palavra: a palavra escrita, condição esta que lhe confere, ao que parece, um novo poder.

 

É verdade que nessa comunidade onde permanece viva a cultura tradicional, a palavra falada ainda desfruta de um estatuto privilegiado: ela se presta não apenas a transmitir a experiência, mas também a manter vivo o mundo das lendas e dos mitos. Ao mesmo tempo, não se trata mais de uma sociedade exatamente tradicional, onde predominaria a oralidade. Na comunidade caboverdiana a palavra falada já convive com a palavra escrita; e a narrativa da mãe evoca justamente esse convívio; mais ainda, a lenda contada por ela reconhece os poderes extraordinários de que a palavra escrita é dotada.

 

O que a lenda revela é que a palavra escrita é revestida de um poder de vida ou de morte sobre as pessoas. Ela pode definir o destino de alguém – afinal é por uma carta que a criatura anuncia a morte inevitável. Quando o filho, não tão crédulo, quer saber se é possível escapar a esse destino – isto é, evitar o recebimento da carta – a mãe nega, invocando o exemplo da entrega de um papel (de embrulho) que pode desempenhar a mesma função da palavra escrita.

 

Essa terrível lenda ecoa também outra narrativa, referida, aliás, nesse mesmo diálogo: a expulsão do amigo, que o filho conta para a mãe[19]. A duas narrativas – a da criatura que chupa o sangue e a da expulsão – estão entrelaças justamente pela palavra escrita: a expulsão, que chega por carta, é também como uma condenação à morte, desde que ninguém quer voltar para o lugar de origem, onde só há sofrimento.

 

Essa referência ao poder da palavra escrita será, de resto, reiterada pela imagem ao final do filme. Aqui não se trata mais diálogo, mas de uma única imagem, a imagem de uma carta – o último plano do filme. Também não se trata mais de uma carta mítica, mas de uma carta de expulsão, endereçada a um imigrante, que aparecerá fixada por um canivete (ou um punhal?) na porta de uma casa. O espectador não pode deixar de perceber esse novo deslizamento no estatuto da palavra. Pois se esta pode decidir, agora numa outra dimensão, o destino de uma pessoa – a expulsão, já sabemos, é uma terrível condenação a essa espécie de “morte lenta” no próprio país – agora a palavra escrita não emana de uma “criatura”, mas de um lugar de poder claramente designado, o estado português, que nomeia também com todas as letras, hora e lugar, a “vítima” e o seu “castigo”.

 

Não espanta que esse filme se chame Tarrafal. Também conhecida como “campo da morte lenta”, esta prisão construída pelo regime salazarista recebeu, ao longo de anos, muitos prisioneiros políticos – dentre os quais um grande número nunca voltou à sua terra de origem. Hoje vazia, mas ainda intacta, seu nome talvez tenha sido invocado por Pedro Costa para nos lembrar que os prisioneiros políticos de nosso tempo não estão necessariamente no espaço carcerário. Estão presos no mundo mesmo, na impossibilidade do lugar, à qual foram atirados sem volta possível.

 

Curiosa ironia que os imigrantes – essa nova modalidade de “presos políticos” que o capitalismo moderno não pára de engendrar – não “possam” mais querer voltar para suas casas, para a sua terra. Com Tarrafal, Pedro Costa nos lembra qual é o “estado do mundo”, do nosso mundo. Tempos lúgubres esses, em que a própria terra de origem parece ter-se tornado uma prisão.

 

Stella Senra

 

 

Referências bibliográficas

 

Horsfield, C. Relations. Catálogo da exposição do mesmo título. Museu Jeu de Paume,

Paris, 2006.

 

A respeito de SITUAÇÕES REAIS, Catálogo da exposição do mesmo título, Paço das

Artes, São Paulo, 2003.

 

Costa,P. “A closed door that leaves us guessing”. Seminário de Pedro Costa, Tóquio,

2005. www.rouge.com.au/10costa_seminar.htlm

 

 

Guimarães, PM e Ribeiro, D. “Entrevista a Pedro Costa”, 20/10/2007

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Nagib, L. e Parente, A. (org) Yasujiro Ozu – O extraordinário cineasta do cotidiano.

Marco Zero/Cinemateca Brasileira/Aliança Cultural Brasil/Japão, São Paulo,

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Conversations em Archipel – Jean Marie Straub Danièle Huilet.

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Gallagher, R. “Straub Anti-Straub”.

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Bresson, R. Notes sur le Cinématographe, Gallimard, Paris, 1975

 

Butcher, P. “Documentar uma sensibilidade humana”  in http.www.revistacinetica.com.br/entpedrocosta.htm.

 

Deleuze,G L´Image-temps. Les Editions de Minuit, Paris, 1985.


[1] Rilke RM. Elegias a Duino. N. 9. Tradução citada pelo fotógrafo Cragie Horsfield em “The world and the word”, Catálogo de sua exposição Relations, Museu Jeu de Paume, Paris, de 31/1 a 30/04/2006.

[2] Costa,Pedro. “A closed door that leaves us guessing”. In http://www.rouge.com.au/10costa_seminar.htlm

[3] Terceiro filme do diretor, Ossos assinala uma mudança de patamar no seu cinema. Pedro Costa  conta que, durante a filmagem, Vanda Duarte lhe perguntou: Agora queres que eu ria ou que eu chore? “A partir dali acabava um filme e começava outro”, comenta o crítico Francisco Ferreira. “Costa começou a apanhar um autocarro para o Bairro das Fontaínhas (local com demolição anunciada), dia após dia, com uma pequena câmara digital (…). “A experiência durou mais de dois anos”, revela o crítico, e deu origem a No quarto de Vanda (2000).  “A vida depende dos trocos – Conversa com Pedro Costa” in A respeito de SITUAÇÕES REAIS – catálogo da exposição do mesmo título com curadoria de Catherine David e Jean Pierre Rehm. Paço das Artes, São Paulo, 2003.

[4] Entrevista a Pedro Costa. Pedro Maciel Guimarães e Daniel Ribeiro. Realizada em 20/10/2007 www.filmesdequintal.com.br/2007/entrevista-pedro-costa/11k. Ventura é um dos imigrantes que assume o papel central em Juventude em marcha; ele estará presente também no filme seguinte, Tarrafal (2007).

[5] Ao falar sobre No quarto de Vanda, Costa explicita assim essa exigência de uma distância: “Amar, dizer sim a alguém ou a alguma coisa com uma câmara (…) implica em saber se nos aproximamos um centímetro ou se nos afastamos cem metros. (…) É preciso saber onde estamos e a que distância estamos do que filmamos. Isto é: reflexão e intuição, por um lado, geometria e sentimento, por outro. In “A vida depende dos trocos – conversa com Francisco Ferreira”. Catálogo da exposição A respeito de SITUAÇÕES REAIS, com curadoria de Catherine David e Jean-Pierre Rehm, Paço das Artes, São Paulo, 2003. Retomando o tema em outra entrevista, Costa afirmou ainda que a distância “é feita por algum pudor. O filme com mais pudor que eu fiz foi No quarto de Vanda, apesar de tudo. Eu dependia muito de um acordo não verbal entre eu e aquelas pessoas, e isso tinha a ver com a distância. Uma distância que era a distância da câmara, a distância que eu estava deles (…). Eu estou nas Fontaínhas, me foi dado uma margem de manobra, eu não posso em quero cruzar umas certas fronteiras”. Entrevista a Pedro Costa. Pedro Maciel Guimarães e Daniel Ribeiro. Op. Cit.

[6] Ao analisar os diálogos nos filmes de Ozu, Sato observa que importa pouco ao diretor conhecer a reação do interlocutor à fala da personagem. Não tendo o diretor a pretensão “de espiar até os seus complexos pensamentos”, para Sato os diálogos de Ozu são concebidos de modo a fazer nascer “harmonia e não confronto, cooperação e não discórdia”. “O diálogo torna-se então uma espécie de dueto”, conclui o crítico.  “Sato, T. “O estilo de Yasujiro Ozu” in Ozu – O extraordinário cineasta do cotidiano. Nagib, L. e Parente, A. (Org.). Editora Marco Zero/Cinemateca Brasileira/Aliança Cultural Brasil-Japão. São Paulo, 1990.

[7] A propósito de Juventude em marcha, seu quinto filme, Costa afirmou: “Ensaiei com cada personagem separadamente, como se fosse um longa-metragem separado para cada um”. Butcher, P. “Documentar uma sensibilidade humana” in Cinética. http.www.revistacinetica.com.br/entpedrocosta.htm.

[8] “Os corpos estão sempre despedaçados, descabeçados, fragmentados. O quadro privilegia obstinadamente partes, pedaços: o dorso, a nuca, o joelho, os pés. Frequentemente presos ao chão, sentados, pousados, ancorados, (…) lançando-se do chão, refratários, tensos. Bullot, E. “Sous le plan – notes sur Moïse et Aaron”. In Jean-Marie Straub Danièle Huilet – Conversations en Archipel Mazzota/Cinemathèque Française. Milão/Paris, s/d.

[9] Analisando um fotograma de Moïse et Aaraon, Érik Bullot comenta que a postura do personagem como que traduz a suspensão de uma corrida no seu elã. O crítico fala de uma “postura física que mistura tensão ao recolhimento. “Os corpos são imantados por alguma revolta ou cólera, abalados por uma situação à qual resistem, oferecendo-lhe uma recusa soberana. Sua base é o seu elã ”. Também as rupturas do ritmo, as síncopes trabalham a tensão entre planos, a fricção, a pressão, o amolar exercidos pela montagem. Também a crítica Teresa Faucon diz que Straub parece “deter, reter, suspender o elã, a força de projeção de cada plano sobre o seguinte para abrir a montagem e penetrar no coração de seu sistema energético: uma energia, um tempo que se manifesta através de uma imobilidade atravessada e carregada de uma tensão máxima.” Faucon,T, “Impeto” in Jean-Marie Straub Daniele Hullet – Conversations em Archipel, op.cit.

[10] Gallagher,T. “Straub Anti-Straub”.www.sensesofcinema.com/contents/07/43/costa-straub-huilet.htlm..

[11] Pedro Costa disse numa entrevista: “Nunca soube escrever diálogos, nunca tive grande coisa para dizer. Em No quarto … ninguém foi obrigado a escrever coisa nenhuma (…) De qualquer maneira eu jamais seria capaz de inventar coisas tão belas, tão fortes, tão justas, tão bonitas como as que a Vanda, o Pango e todos os outros dizem”. Admitindo, de qualquer modo, sua intervenção nessas falas, Costa prossegue: “Só tive que lhes agradecer e organizar tudo para que ainda ficassem mais fortes”. In “a vida depende dos trocos”. Op. Cit.

[12] Todas essas características trazem à mente a noção de fabulação, com a qual o filósofo Gilles Deleuze qualificou a fala de personagens do campo documental (ele focalizou, particularmente, o “cinema direto”, o “cinema verdade” e o “cinema vivido”). A fabulação teria lugar quando o filme desinveste a “busca da verdade” e deixa o personagem ficcionalizar; este seria um modo de escapar à dicotomia ficção/realidade, sujeito/objeto, e de chegar à verdade do personagem como “verdade da ficção”. A evocação de uma “fabulação” no cinema de Pedro Costa pode ser tentadora, mas parece, pelo menos à primeira vista, enganosa. Os personagens do diretor são mantidos num estado de “reserva”, de “contenção”; eles não são deixados “à vontade”, não se “abrem” e, se chegam a evocar suas lendas, estas são parte de um imaginário “comum”; por outro lado, suas falas são  “enquadradas” (no sentido genérico do termo) por regras muito claras – algumas das quais pudemos apreciar no decorrer da presente análise. Assim, se os filmes do diretor escapam à dicotomia ficção/realidade, seus personagens guardam uma “distância” em relação a si mesmos  pouco propícia à entrega que a fabulação exige. Deleuze, G. L´Image-temps.Les Editions de Minuit, Paris, 1985.

[13] É o próprio diretor quem usa o termo “construção” a respeito dessa espécie de “criação conjunta”. A respeito da carta que o personagem de Ventura escreve à mulher – e que pode ser tomada como parâmetro desse método de trabalho – ele disse: “Essa carta imagina (grifo meu) como é que vem a um pedreiro uma declaração de amor. Este pedreiro que construiu um museu onde está um quadro de Rubens, mas que não entra lá (…) A carta é um pouco isso, são as coisas que ele quer e são as coisas que eu quero, combinadas. E também coisas que eu não quero, mas que tenho que aceitar, e coisas que ele não quer, mas que tem que aceitar. (…) Ventura escreve uma magnífica carta de amor, de um homem que fala do trabalho, que está a construir paredes. É também uma carta em construção (grifo meu). As ligações da carta são minhas, escrevi pequenas coisas para organizar o texto, que estava disforme, E tem três ou quatro coisinhas de um poeta francês que eu gosto muito, Robert Desnos, que morreu num campo de concentração”. Butcher, P. Op.cit.

[14] Sabe-se que os dois diretores não partem da experiência de seus personagens – como faz Pedro Costa – mas de um ou vários textos, de livros que eles pretendem “expropriar”. Assim, a propósito de seus filmes inspirados nas tragédias inacabadas de Hölderlin, eles explicaram que a dicção dos textos não tinha a ver com o seu “sentido” propriamente, mas com a amplidão do sopro dos atores. “São textos produzidos por corpos que respiram, dotados de vozes (…)”, escreveu Muriel Combes. Além disso, destaca Combes, para acentuar essa função das vozes, eles recorrem a diferentes tipos de disjunção: dos sons e das imagens, dos corpos e das vozes, do texto e da música… Combes, M. “À présent”, in Jean Marie Straub/Daniele Huilet – Conversations en Archipel, op. cit.

[15] Gallagher,T. Op. Cit.

[16] “Não sou o tipo do cineasta a quem interessa saber o que o ator sente quando está filmando. Me interessa mais como o ator vai dizer uma certa coisa, de que maneira, como vai soar uma frase, como é o ritmo, do ator, as pausas dele.”. Entrevista a Pedro Costa. Op. cit.

[17] Bresson, R. Notes sur le cinématographe. Gallimard, Paris, 1975.

[18] Ao afirmar sua recusa da “psicologia” do personagem e ressaltar a diferença que faz entre “psicologia” e “verdade”, Costa afirmou: “Há filmes como os meus que, apesar de tudo, acho que trazem muito gordura psicológica em torno deles, que as pessoas às vezes tomam como verdade, como a verdade nua e dura no cinema”. In Entrevista a Pedro Costa, op. Cit.

[19] Numa das cenas seguintes veremos um personagem surgir com um papel nas mãos, que lê enquanto dialoga com o outro.  Saudado com a frase “minhas condolências, Lourenço”, a cena sugere que se trata de uma carta de expulsão.

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