Como animais que morrem

O texto propõe uma ampliação do debate sobre o documentário, levando em conta dois fenômenos concomitantes: a inauguração e generalização, na sociedade contemporânea, de novos usos da imagem e, sobretudo, da sua introdução no campo das artes plásticas; a necessidade de buscar um novo olhar sobre o Brasil, capaz de abarcar as transformações pelas quais o país passou nos últimos vinte anos.

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Cavalos no ar

Meu tema é o instante? Meu tema de vida. Procura estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com a vida que nasça com o  tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim.                                                    Clarice Lispector

                                          

And this is artificial moonlight

An artificial sky

Horses in the air                                     

Feet on the ground

Never seen

This picture before

Philip Glass (do disco The photographer, da peça com o mesmo título, montada no  Holland Festival, 1982).

 

Para Muybridge, gentleman e fotógrafo, os cavalos voam

Entre uma pisada e outra, elevam suas patas no ar e flutuam.

Por um tempo ínfimo, imperceptível aos olhos humanos, eles voam.

A partir de 1872, o reconhecido fotógrafo de paisagens Edward Muybridge

Dedica sua vida ao estudo dos seres humanos e dos animais em movimento.

É a imagem invisível nesse movimento que ele busca fixar.

Com que olhos terá Muybridge entrevisto o vôo dos cavalos?

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Palavra, política e mito na trilogia de Fontaínhas de Pedro Costa

Um dos temas mais recorrentes da crítica da obra de Pedro Costa é a indiferenciação, nos seus filmes, entre o aspecto documental e a ficção. Quer privilegiem uma dessas vertentes, quer se interessem pelas passagens de uma à outra, as análises sempre convergem ao enfatizar a originalidade desse cinema ao lidar com a realidade da vida e a ordem da invenção. Também o convívio ou a coexistência de uma fala comum, ordinária, e de uma linguagem mítica costumam ser distinguidos como uma das maiores conquistas dessa obra que tem no seu foco uma população exilada da palavra pela sua condição periférica. Na minha apresentação proporei o abandono dessa dualidade entre ficção e realidade, trazendo para o cerne da discussão o estatuto da palavra no cinema de Pedro Costa, na qual não verei como distintas, as dimensões ordinária mítica.  Continuar lendo

A modelo e o papa

As imagens são, ao mesmo tempo, o lugar da verdade e da mentira, da realidade e da ficção, da objetivação e da encenação. Por isto a simulação, tanto no sentido corriqueiro do termo (fingir o que não se é), quanto na sua acepção militar (fingir o que poderá vir a ser ou que será) nelas se funda e delas procura tirar o maior partido. Curiosamente quando as técnicas de captação, de distribuição e de acesso à imagem se tornam instantâneas (isto é, quando todos podem tudo captar e tudo ver o tempo todo) mais cresce a dúvida sobre o que é visto; e, por conseqüência, maior passa a ser a margem da simulação.  Continuar lendo

Artur Barrio – fricções entre arte e registro

Análise do filme Abertura I. De Artur Barrio.

Texto apresentado no  X Encontro SOCINE, Ouro Preto, 2006.

O texto analisa o filme Abertura I, de Artur Barrio. Ele desenvolve o ponto de vista de que, ao adotar o filme Super8 – e mais tarde o vídeo – para o registro de suas ações e performances, os artistas não só conferiram uma nova dimensão ao seu trabalho, mas foram também levados a definir o estatuto de tais registros em relação às exigências de suas próprias obras; ao mesmo tempo, esta incorporação de uma nova dimensão as suas práticas artísticas lhes impôs o confronto com novas linguagens, dando origem a diferentes estratégias e procedimentos.

O filme de Artur Barrio é tomado como exemplar para o exame dessas múltiplas implicações do ato de registrar, tanto em virtude das fricções desencadeadas pela concepção que o artista tem do registro como mera “informação” sobre a obra, quanto das tensões que se estabelecem entre esta e as exigências próprias da linguagem cinematográfica.  Continuar lendo

Um grão de vida

Os direitos do homem são axiomas: eles podem coexistir no mercado com muitos outros axiomas, especialmente a propósito da segurança da propriedade, que os ignoram ou, mais que os contradizem, os suspendem: “l´impur mélange ou l´impur côte-à-côte”, dizia Nietzsche. Quem pode aguentar e gerir a miséria e a desterritorialização-reterritorialização das favelas, senão as polícias e os exércitos poderosos que coexistem com as democracias?Qual social-democracia não deu ordem de atirar quando a miséria deixa o seu território ou gueto? Os direitos não salvam nem os homens nem uma filosofia que se reterritorializa sob o Estado democrático. Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo e é preciso muita inocência, ou safadeza, a uma filosofia da comunicação que pretende restaurar a sociedade dos amigos ou mesmo dos sábios, formando uma opinião universal como “consenso” capaz de moralizar as nações, os Estados e o mercado. Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanentes do homem provido de direitos. E a vergonha de ser um homem, nós não a experimentamos apenas nas situações extremas descritas por Primo Levi, mas nas condições insignificantes, diante da baixeza e da vulgaridade da existência de pensamentos-para-o-mercado, diante dos valores, dos ideais e das opiniões de nossa época. A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas vem de dentro. Não nos sentimos fora de nossa época, ao contrário, não paramos de fazer com ela compromissos vergonhosos. Este sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante delas. E não há outro meio senão dar uma de animal (grunhir, cavoucar o chão com os pés, nitrir, entrar em convulsão) para escapar ao ignóbil: o próprio pensamento está por vezes mais próximo de um animal que morre que de um homem vivo, mesmo democrata.

 Qu´est-ce que la philosphie

Félix guattari, Gilles Deleuze.

Les Editions de Minuit, Paris, 1991.

p. 103.

A afrontosa frase do filósofo se presta muito bem como epígrafe a uma evocação do velho tema da função da imprensa no sistema midiático contemporâneo ou, mais precisamente, da sua mais decantada missão – a formação da opinião pública e desse seu tão mimando rebento, o consenso. Tratado numa chave crítica, o tema surgiu no filme de Costa Gavras, O quarto poder. Mas numa demonstração de que este tipo de postura tem dado o tom, já chegou também às portas das redações e estações de TV, que multiplicam suas colunas de auto-crítica, seus programas dedicados à ética jornalística, à auto-observação e a uma espécie de “controle’ da informação. Continuar lendo

Passo a passo

Este texto foi escrito por ocasião da campanha eleitoral para a escolha do candidato à Presidência da República pelo Colégio Eleitoral em l984, campanha que opôs Tancredo Neves e Paulo Maluf.

Já despontam aqui dois procedimentos que irão marcar a produção posterior: uma leitura política da imagem fotográfica, e a consideração da fotografia como parte de um “dispositivo” – dispositivo constituído aqui pela combinação altamente potencializadora entre elementos da própria foto e da página do jornal. Continuar lendo