Um grão de vida

Os direitos do homem são axiomas: eles podem coexistir no mercado com muitos outros axiomas, especialmente a propósito da segurança da propriedade, que os ignoram ou, mais que os contradizem, os suspendem: “l´impur mélange ou l´impur côte-à-côte”, dizia Nietzsche. Quem pode aguentar e gerir a miséria e a desterritorialização-reterritorialização das favelas, senão as polícias e os exércitos poderosos que coexistem com as democracias?Qual social-democracia não deu ordem de atirar quando a miséria deixa o seu território ou gueto? Os direitos não salvam nem os homens nem uma filosofia que se reterritorializa sob o Estado democrático. Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo e é preciso muita inocência, ou safadeza, a uma filosofia da comunicação que pretende restaurar a sociedade dos amigos ou mesmo dos sábios, formando uma opinião universal como “consenso” capaz de moralizar as nações, os Estados e o mercado. Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanentes do homem provido de direitos. E a vergonha de ser um homem, nós não a experimentamos apenas nas situações extremas descritas por Primo Levi, mas nas condições insignificantes, diante da baixeza e da vulgaridade da existência de pensamentos-para-o-mercado, diante dos valores, dos ideais e das opiniões de nossa época. A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas vem de dentro. Não nos sentimos fora de nossa época, ao contrário, não paramos de fazer com ela compromissos vergonhosos. Este sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante delas. E não há outro meio senão dar uma de animal (grunhir, cavoucar o chão com os pés, nitrir, entrar em convulsão) para escapar ao ignóbil: o próprio pensamento está por vezes mais próximo de um animal que morre que de um homem vivo, mesmo democrata.

 Qu´est-ce que la philosphie

Félix guattari, Gilles Deleuze.

Les Editions de Minuit, Paris, 1991.

p. 103.

A afrontosa frase do filósofo se presta muito bem como epígrafe a uma evocação do velho tema da função da imprensa no sistema midiático contemporâneo ou, mais precisamente, da sua mais decantada missão – a formação da opinião pública e desse seu tão mimando rebento, o consenso. Tratado numa chave crítica, o tema surgiu no filme de Costa Gavras, O quarto poder. Mas numa demonstração de que este tipo de postura tem dado o tom, já chegou também às portas das redações e estações de TV, que multiplicam suas colunas de auto-crítica, seus programas dedicados à ética jornalística, à auto-observação e a uma espécie de “controle’ da informação. Continuar lendo