Genciana amarela, genciana azul – Tarrafal e o estatuto da palavra no cinema de Pedro Costa

Resumo:

O texto propõe uma abordagem de Tarrafal , de Pedro Costa, com o objetivo de focalizar o estatuto da palavra no cinema do diretor. A análise considera que a partir de No quarto de Vanda, quando passa a trabalhar com os imigrantes caboverdianos em Lisboa, a palavra passa a ter um papel central na obra de Pedro Costa. Esse papel ganha maior complexidade e mais definição em Juventude em Marcha, cujos diálogos mesclam passado e presente, e onde relato do cotidiano, memórias e lendas se equivalem; Tarrafal dá continuidade a esse procedimento, sendo o estatuto da palavra enriquecido ainda com a integração da palavra escrita. Continuar lendo

Blade Runner e a renovação do pacto

Desde que a conduta dos personagens da tela se pareça com a dos homens, desde que seja humana sua ação, é inútil tê-los diante de nós em carne e osso ou ocupando um espaço bem real: enquanto tal, a realidade deles nos basta. Ou seja, é possível perceber ao mesmo tempo objetos ou acontecimentos como existentes ou como imaginários, como figuras reais ou como motivos luminosos sobre a tela de projeção. É isso que funda a arte do filme.

Rudols Arnheim

O tempo é gerador do cinema: o que se subtrai na fabricação das imagens fixadas pela câmera e o que lhes é acrescentado pelo projetor na hora do espetáculo. Por isso a experiência sempre secreta do cinema se atém a essa outra experiência do tempo que é a nossa memória: outro modo de presença a nós de imagens pela eliminação e acréscimo de camadas de tempo.

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Abstração líquida

Limite começa oferecendo ao espectador os acordes da Gymnopédie, de Eric Satie; durante um minuto a sala escura é perpassada pelo ritmo da música, antes que a primeira imagem surja na tela. Assim inscritas no interior da música, incrustadas no seu ritmo, as imagens de Limite se propõem de imediato ao espectador como enquanto formas que existem e se sustentam no tempo, como ritmo também; sem se deixar levar, embalar pela músca não é possível “ver” as imagens do filme de Mário Peixoto. Continuar lendo

Mar íntimo

Limite é um filme atípico no cinema brasileiro, mais proclamado pela sua filiação à tradição européia que por seus vínculos o país de origem. Sem ascendência nem descendência locais, o vulto mítico a ele agregado fez ainda do filme um fenômeno isolado do cinema brasileiro. Considerando seu débito com o cinema europeu, apontarei traços sugestivos de outro tipo de afinidade de Limite com o país ao qual ele teria sido alheio. Parece-me, aliás, que é precisamente em virtude dessa filiação – com o cinema francês dos anos 20 especificamente – que Limite incorpora, como nenhum outro filme brasileiro, a paisagem, a terra, o mar, a vegetação, a visão da cidade interiorana, suas construções, suas ruas, estradas poeirentas, os tipos físicos brasileiros (inclusive dos atores, sem maquiagem) os rostos anônimos da população pobre e suas atividades à beira-mar. Continuar lendo

Palestra

Em outro momento já falei do jornalista como personagem do cinema. Agora vou tomá-lo como uma espécie de operador da economia narrativa. Ao ser considerado nesta nova perspectiva, o jornalista deixa de ser tomado como “personagem”  – um ser dotado de certas qualidades ou características que o qualificam para uma determinada ação; suas características pessoais e profissionais passam a ser levadas em conta na medida em que são postas a proveito da “armação narrativa”. O que acontece de curioso com o personagem do jornalista é o fato de que ele possa ser usado tanto no sentido de consolidar um modelo narrativo, como fizeram os “filmes de jornalista” quanto, no sentido oposto, quando o filme pretende marcar sua distância da narrativa clássica. Talvez se possa invocar uma certa “plasticidade” desse personagem, que se presta a funções tão divergentes entre si no cinema; mas, em todo caso, é certo que sua atividade em prol da verdade faz dele o personagem através do qual o cinema tanto pode afirmar a verdade das suas imagens quanto se interrogar sobre elas, ou sobre si mesmo. Continuar lendo

Imagens sem limite na escrita de um cineasta

Resenha do livro A Alma, segundo Salustre , de Mário Peixoto. Embrafilme, Brasília.

Publicada no Caderno “Livros” da Folha de São Paulo, 31/07/1983.

A Alma, segundo Salustre  é o argumento de um filme que Mário Peixoto nunca chegou a realizar. Um dos vários filmes que tentou fazer depois de Limite e que agora a Embrafilme edita na forma de livro. Continuar lendo

La question en question – l´interview dans le documentaire brésilien de nos jours

À la fin des années 80, l´humoriste José Simão a mis en circulation une expression un peu surannée: “Perguntar não ofende”, rappelée à chaque fois qu´il posait une question apparément incongrue et faussement naive, à propos d´un évènement de l´actualité – en général de l´actualité politique. Destinnées à susciter le rire, l´incongruité et la naiveté de la question en fait mettaient à nu la version officielle, ou courante, de l´évèment en question. Avec la verve qui revient aux humoristes, José Simão s´était rendu compte que le pouvoir de suggérer, de faire comprendre sans affirmer, dont dispose la question, la rendait  un outil idéal pour mettre en évidence ce qui ne pouvait ou ne devait pas être énnoncé autrement. Continuar lendo

Kogi e a busca do invisível – a fotografia no cinema de Paula Gaitán

A interlocução que se estabeleceu, nos últimos vinte anos, entre diferentes modalidades de imagem e o campo das artes plásticas tem dado origem a uma intensa produção de obras, o que coloca em novo patamar tanto a reflexão sobre a imagem e seu estatuto, quanto a investigação sobre as novas configurações do campo das artes plásticas. Continuar lendo

Estamira – Facamp

Não vou abordar aqui propriamente a figura de Estamira, assunto para tempo e cuidado muito maiores. Considerarei o modo como ela foi focalizada pelo filme.

Apesar de algumas exceções, ainda predomina entre nós o documentário baseado na entrevista. Sem entrar no mérito da questão, destacarei apenas a importância da fala no documentário, sendo muitas vezes a imagem submetida ao dito, ou praticamente conduzida por ele. Continuar lendo