Mar íntimo

Limite é um filme atípico no cinema brasileiro, mais proclamado pela sua filiação à tradição européia que por seus vínculos o país de origem. Sem ascendência nem descendência locais, o vulto mítico a ele agregado fez ainda do filme um fenômeno isolado do cinema brasileiro. Considerando seu débito com o cinema europeu, apontarei traços sugestivos de outro tipo de afinidade de Limite com o país ao qual ele teria sido alheio. Parece-me, aliás, que é precisamente em virtude dessa filiação – com o cinema francês dos anos 20 especificamente – que Limite incorpora, como nenhum outro filme brasileiro, a paisagem, a terra, o mar, a vegetação, a visão da cidade interiorana, suas construções, suas ruas, estradas poeirentas, os tipos físicos brasileiros (inclusive dos atores, sem maquiagem) os rostos anônimos da população pobre e suas atividades à beira-mar.

O filme se abre com uma série de fusões de planos fixos de valor simbólico, que se encerram com um mar cintilante; e termina com os mesmos planos, agora dissolvendo as fusões. Entre essas duas séries serão desenvolvidos dois segmentos: as situações de três personagens – as mulheres número 1 e 2, o homem 1, num barco à deriva no mar, e os esboços de narrativa  de cada um sobre suas vidas. Sem explicação sobre o que os reuniu nesse naufrágio, tal situação assume valor alusivo, como se o esgotamento ou a impossibilidade de suas humanas aspirações os tivessem colocado, literalmente, “no mesmo barco.”

Na verdade, é o foco na natureza que cria dois regimes de imagens no filme: imagens da terra e imagens do mar, ligados pelo flash back. número um e dois. No barco, um rarefeito desenvolvimento dramático propõe esboços de ações, inacabadas, ou ineficazes; na terra, a pesada carga dramática extraída da paisagem costeira e do meio urbano presta-se a uma, eu diria, “sugestão” de narrativa – da vida dos personagens. Esta oposição mar-terra, com valores invertidos, constitui o eixo do filme: enquanto a terra é o lugar dos encadeamentos, da narrativa, do movimento, do passar do tempo, o mar abriga a rarefação da ação, a quase imobilidade e um tempo que parece não passar.

O barco é filmado em planos gerais ou médios, a câmera em altura humana, ângulos aceitáveis (ligeiras plongées, planos frontais ou closes equilibrados). Encadeadas por corte simples ou fusão, as imagens lentíssimas criam um ritmo no limiar da imobilidade. Poucos planos, longos, poucos e suaves movimentos de câmera, movimentos limitados dentro do plano, closes dos personagens. Além dessa construção, a lentidão também se justifica do ponto de vista da situação: o barco não facilita o movimento, está à deriva,os personagens sem recursos dispõem de um só remo, falta água, comida, há um furo no casco. Embora esgarçada, são respeitados a unidade de tempo e de espaço, a continuidade da ação. A câmera registra, em médios e primeiros planos, os personagens: roupas rasgadas, cabelos desgrenhados, gestos de desespero, desânimo. O movimento e o crescendo dramático  só chegarão na cena final – a tempestade no mar.

As imagens da terra são concebidas de outro modo. Posições de câmera inusitadas, acrobáticasl (plongées e contraplongées a 90 graus – com a câmera às vezes no chão voltada para o céu); movimentos marcados, desafiando a gravidade: panorâmicas – tanto horizontais quanto verticais – de 360 graus em torno de personagens; deslizamentos ou corridas da câmera rente ao chão, giro sobre si mesma. Os enquadramentos ousados tomam os personagens em ângulos pouco usuais, vistos de muito alto ou de baixo, os closes de seus rostos em cortes deslocados – quando não são mostrados pelos pés, orelhas, cabelos, mãos. Procedimentos semelhantes se repetem com a natureza, o meio e com os objetos: tetos e fachadas das casas em vertigem, árvores inclinadas, capim ventado, bromélias em big close, rochas atormentadas, copos cintilantes, objetos de costura ampliados.

Se a paisagem, o meio e as coisas são tão importantes em Limite, não é tanto como cenário, sede ou objeto de ações mas, ao mesmo título que as pinceladas na pintura impressionista, como elementos destinados a suscitar, pelo acúmulo, a sensação ou a impressão de um “mundo”, em consonância com o estado de espírito dos personagens. O parentesco do filme com seus contemporâneos franceses está nesse enfoque espiritual do movimento que, como a vanguarda dos anos 20 (Abel Gance, Marcel l´Herbier, Jean Epstein) via no cinema um modo privilegiado de dar conta de uma realidade puramente espiritual.

Em Limite o apelo ao movimento da natureza e das coisas não remete  à ação, nem a uma história; visa algo interior um “movimento” íntimo dos seres: homens e natureza, juntos, devem criar um mundo – um “clima”, ou atmosfera – como dizia a crítica dos anos 30. Há uma íntima associação entre as imagens dos personagens, da natureza e dos objetos – como se o movimento do espírito e o movimento do mundo convergissem e se relançassem incessantemente – e como se o filme se quisesse a soma de todos os movimentos, o movimento em si, consagrando a reunião do espírito e do mundo. É como se a paisagem portasse uma “alma”, que contagia os homens com a elevação de seu movimento. imagem 3

Como Jean Epstein, Mario Peixoto recorre à  ˜linguagem dos objetos”big closes de carretéis e tesouras, cercas, janelas, de rodas, mas também traz imagens de rochas e arvores, vento e poeira, cuja função poética é conferir dimensão espiritual a personagens quase sem história. Como em Epstein, “o” mundo visível torna-se “um mundo”, tão real quanto simbólico – em Limite, espantosamente real, mesmo sendo simbólico – tal é a intensidade que o olhar confere à paisagem, à pequena cidade e ao seu ambiente.

A análise de Coeur Fidèle, de Epstein,  por Jean Mitry também pode ser estendida a Limite quando o crítico afirma que o valor expressivo da imagem é obtido através do emprego sistemático do primeiro plano, do ritmo das relações entre imagens através de uma montagem rigorosa, no qual a própria mobilidade da tomada intervém como um elemento de dinamismo, carregado por sua vez de significação.

Ao buscar exprimir emoções puras por meio da paisagem, das coisas, e de seus movimentos, Limite guarda filiação com a chamada Escola Impressionista Francesa. Também quando faz da relação métrica entre planos a base da sua montagem, buscando a criação de um ritmo visual puro e de uma significação estabelecida em relação ao valor de duração das  imagens, ele reafirma essa inspiração: o escritor Octavio de Faria chamava Limite de film de ritmo: como em Abel Gance, a duração dos planos busca por em evidência uma expressão fundada numa estrutura rítmica metodicamente organizada.

Tempo medido – mas  “naturalmente” introduzido pelo movimento das coisas e do mundo – é assim que o movimento do mar parece ter passado à terra, as imagens ora se sucedendo em tranquila suavidade, ora se precipitando, como ondas, em montagem curta. Essa composição quantitativa baseada no princípio do ritmo não se impõe, no entanto, à pujança da natureza, ao império dos objetos; antes, ela os faz vibrar em movimento e existência intensa.

Limite deve também a Epstein quando mostra objetos e paisagem em ângulos extraordinários (45 graus, plongées e contraplongées de 90 graus). imagem 4  Ex:, o gravatá encravado, o homem e a mulher que se confundem com a árvore, a mulher n. 2 que parece emergir da imensa pedra sobre o mar, imagem 5 os instrumentos de costura em big close que são associados à mulher n. 2

É ao captar o movimento das almas nas coisas, nos objetos, e na natureza que o filme de Mário Peixoto, sem deixar de partilhar o espiritualismo do cinema francês, registra sua afinidade com o lugar, sua configuração física e humana imagem 7. O “formalismo” a ele atribuído deve ser entendido no sentido em que Jean Mitry falava de El Dorado, de Marcel l´Herbier: como uma “profusão de imagens cuja significação não se afirmaria tanto no nível do drama, ou da psicologia, mas, ao contrário, de imagens fortemente significativas no plano da atmosfera, exprimindo “estados da alma” ou traduzindo, como em notações musicais, tudo o que é passível desta transposição. Leit motiv dos franceses , a referência à música é também anotada pela crítica brasileira, que chamou Limite de filme musical – o que faz aflorarem de imediato os afetos, como a música numa espécie de analogia sensitiva.

O filósofo Gilles Deleuze aponta um elo entre os dois tipos de movimento próprios da escola francesa, também patentes em Limite: o que se extrai do que se move: capim ventado, rodas, poeira, pés em caminhada; e outro, mais fugidio, extraído da alma – movimentos que se reúnem numa paixão conduzindo à morte. Enquanto o movimento incorporado dos móveis se amplia até a dimensão cósmica, diz ele, o movimento que abarca os indivíduos os eleva à escala de uma ˜alma do mundo˜. Ele poderia estar se referindo a Limite e aos seus personagens condenados, quando afirma que a quantidade cinética de movimento é extraída de uma coisa (natural ou não), ou de uma máquina, e a direção do movimento vem da alma – numa unidade que, tomada como uma paixão, deve se prolongar até a morte.

Cinema de sensações, a vanguarda francesa é definida pelo seu interesse pela quantidade de movimento e pelas relações métricas que a expressam – por uma concepção dita científica da montagem (distinta tanto da concepção orgânica dos americanos quanto da dialética dos soviéticos). O que se move é ultrapassado, para se extrair um máximo de quantidade de movimento num espaço dado – o que em Limite está longe de anular o valor sensível dos objetos e da natureza: o movimento extraído é potencializador das imagens da natureza e das coisas, e dos afetos que elas atualizam.

É curiosamente, essa inspiração francesa no tratamento da paisagem em comunhão com os humanos que dá lugar, em Limite, às mais intensas imagens da paisagem que a tradição cinematográfica brasileira já mostrou. Trata-se de um olhar inédito sobre a paisagem marítima e costeira, a vegetação, a terra, as pedras, as estradas poeirentas, o vento. Seu equivalente talvez surja bem mais tarde, com a integração de um outro olhar – quando o vídeo passa a propiciar ao cinema  experiências dessa mesma ordem de intensidade: penso, por exemplo, nos filmes de Cao Guimarães, em algo já esboçado em Acidente, A alma do osso, mais explícito em Andarilho e, elevado ao máximo, com Ex Isto.

Água

O aspecto que mais aproxima Limite do cinema francês e, ao mesmo tempo, mais contribui para  a valorização da paisagem brasileira, é o gosto que  ambos partilham pela água. Se vários tipos de móveis ou motores atuam no filme para a propagação do movimento, a água é, além disso, o meio no qual os personagens do barco são vistos e com o qual vão se fundir. Quando as três narrativas se encerram, o movimento é assumido pelo mar e se impõe, sozinho – os três personagens, enfim, desaparecendo.

É o momento em que se inicia a tempestade, e o mar toma conta de toda a tela, assumindo por completo o movimento do filme. Trata~se agora do mar em sua concretude, em sua massa e sua força e, ao mesmo tempo, em toda a intensidade das almas em desespero – mar ao mesmo tempo real e íntimo.

A água dispõe de um poder mais seguro que as coisas e objetos para extrair movimento da coisa movida. Deleuze notou que a vanguarda francesa opera uma liberação da água de sua finalidade orgânica, conferindo-lhe finalidades próprias e fazendo dela a forma daquilo que não tem consistência orgânica. No cinema francês, o recurso ao mar não significou o abandono da mecânica mas, ao contrário, uma passagem de uma mecânica dos sólidos a uma mecânica dos fluidos. Essa passagem tanto pode opor sólido e líquido – passagem concreta que vimos nos dois segmentos de Limite –  quanto, do ponto de vista abstrato, vai encontrar no líquido uma nova extensão da quantidade de movimento no seu conjunto.

 

Em Limite, um mar quase parado é introduzido nas primeiras cenas e um leve oscilar do barco inaugura o movimento do filme: mas a partir de então é como seu o movimento fosse transferido à terra, dando lugar a um dinamismo de grande poder expressivo. Mas, além dessa incorporação indireta do movimento do mar, também os personagens de Limite parecem passar para um “estado líquido” – para uma outra dimensão.

Enquanto a situação bloqueada do barco os imobiliza, as três narrativas incorporaram a mobilidade do mar – Mas esse movimento incorporado não tem centro: as narrativas são rarefeitas, sugerindo que o que a terra incorporou foi uma percepção liquefeita desses corpos no mar. Assumida por uma câmera flúida que ora se move lentamente, ora corre de um lado para outro, contorna coisas e personagens, desliza  sob ou sobre objetos e seres, pessoas e paisagens, é como se as narrativas reproduzissem a visão descentrada que se tem da terra a partir da água – percepção estabelecida no estado líquido e não mais no sólido.

Nessa perspectiva, podemos dizer que o filme leva ainda mais longe o projeto da escola francesa, cujos diretores não assumiram o mesmo grau de compromisso com a água que  Mário Peixoto . Em La Belle Nivearnaise de Epstein, ou em Atalante de Vigo, os personagem “vivem” literalmente na água, moram nas chalupas: vida na terra e vida na água se opõem de fato – e o mergulho na água, a fusão corporal só pode se dar no plano da imaginação (em Atalante, quando o marido pensa na mulher que fugiu), ou como punição (em La Belle Nivearnaise o mediato intrigante se afoga após a briga com o herói.

Em Limite o mar não se opõe à terra desse mesmo modo – não somente ele parece ˜transferir” para ela o seu movimento, como o estado líquido passa a constituir uma espécie de “destino natural” a que  chegam os personagens quando seus elos terrestres se romperam.

A partir desse momento o mar estabelece um outro e novo regime de imagens, aquáticas, que não apenas permitem a abstração mais radical da montagem mas, curiosamente, impregnam o filme da sua maior “materialidade”. A água entra em relação com a própria superfície da tela – o filme assumindo inusitado caráter experimental .

Há dois modos de liquefação da tela. Na tempestade, o mar de água, absorve o conjunto das imagens, como que as fazendo submergir: o oceano investe a  superfície da tela durante 6 minutos, na mais pura consagração do movimento cinematográfico. São planos de ondas quebrando em montagem curta, em que empuxo e  colisão formam linhas convergentes e divergentes, circulares, ascendentes e descendentes – numa pura trajetória de forças que, chegando ao clímax da emoção, fazem da tela superfície de distribuição dos movimentos das ondas. A tela é como um mapa de intensidades, de todas as forças que foram mobilizadas pelo filme.

O segundo modo se dá quando  o mar é estilhaçado em pontos de luz. Nessa outra  abstração líquida não se trata de água, mas de um mar de luz – mar desnudado de sua própria matéria e movimento. Talvez por isso se opere ainda um segundo desnudamento, ou uma nova abstração:  a própria tela é subtraída enquanto matéria e como superfície para fazer emergir sua outra dimensão – a tela como luz. O mar de luz, o mar abstrato é o limite do mar, onde se precipitam, se estilhaçam e se extinguem as imagens do filme.

Stella Senra

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