Diário de Sintra é uma evocação de Gláuber Rocha feita pela sua viúva, Paula Gaitán. Sintra é a cidade portuguesa onde o diretor viveu, com a família, até o seu fim prematuro. O “diário” se refere a um percurso no tempo, mas também no espaço; a penosa revisitação que Paula empreende do lugar, do passado; mas, também, do encontro de Paula com a paisagem, com a gente, com a luz, com o céu. São imagens atuais, alternadas com filmes e fotografias de Gláuber , dos filhos, a casa, da vida em família. Continuar lendo
Arquivo da categoria: Cinema
Amor/horror: a pele da política – O cinema de Marguerite Duras
A obra cinematográfica de M. Duras, extremamente complexa, foi e continua sendo única dentro do cinema moderno. Desde os anos 70, seus filmes mobilizam importantes críticos e estudiosos da teoria do cinema – e de outras áreas – muitos dos quais apontam seu papel disruptor no desenvolvimento do cinema contemporâneo, ali divisando uma série de questões desafiadoras para seu pensamento. Continuar lendo
Perguntar (não) ofende
Texto publicado no livro Ensaios no real – O documentário brasileiro hoje. Migliorin, C. Org. Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2010.
Anotações sobre a entrevista: de Gláuber Rocha ao documentário brasileiro recente.
1.
Lá pelo final dos anos 80, o colunista José Simão, da Folha de São Paulo, cunhou a expressão “Perguntar não ofende”, reiterada quando trazia à baila algum acontecimento da atualidade – em geral de cunho político – para introduzir uma pergunta pretensamente inocente, com a função de expor a má fé de sua versão “oficial” . Com a malícia que costuma ser dom dos humoristas, ele percebeu que essa capacidade de dar a entender, sem afirmar, fazia da pergunta o instrumento ideal para por em evidência o que não podia ou não estava sendo dito com todas as letras. Além dessa falsa candura, que acabava revelando a desfaçatez com que se pode mentir, a pergunta do crítico ainda tornava patente um fenômeno na época pouco discernido, mas que não parou, desde então, de se acentuar: o “entorpecimento” da linguagem, uma espécie de “indiferença” muito característica do nosso tempo, que permite a circulação, sem entraves, pelo discurso, das mais descaradas mentiras – como se elas estivessem praticamente “fadadas” à aceitação pública. Continuar lendo
As duas viagens
Sobre Os Arara, de Andrea Tonnacci
Publicado na revista Arte em São Paulo n. 17, julho-agosto de 1983.
Há duas viagens em cena.
A primeira, do indigenista, se desloca sobre o mapa. É da mesma natureza das viagens que nos deram esse modo de representação, e delas difere apenas em grau. Em vez de ocupação, ela consagra o espaço como lugar da separação: reservas, zonas interditadas. Continuar lendo
Como animais que morrem
O texto propõe uma ampliação do debate sobre o documentário, levando em conta dois fenômenos concomitantes: a inauguração e generalização, na sociedade contemporânea, de novos usos da imagem e, sobretudo, da sua introdução no campo das artes plásticas; a necessidade de buscar um novo olhar sobre o Brasil, capaz de abarcar as transformações pelas quais o país passou nos últimos vinte anos.
Palavra, política e mito na trilogia de Fontaínhas de Pedro Costa
Um dos temas mais recorrentes da crítica da obra de Pedro Costa é a indiferenciação, nos seus filmes, entre o aspecto documental e a ficção. Quer privilegiem uma dessas vertentes, quer se interessem pelas passagens de uma à outra, as análises sempre convergem ao enfatizar a originalidade desse cinema ao lidar com a realidade da vida e a ordem da invenção. Também o convívio ou a coexistência de uma fala comum, ordinária, e de uma linguagem mítica costumam ser distinguidos como uma das maiores conquistas dessa obra que tem no seu foco uma população exilada da palavra pela sua condição periférica. Na minha apresentação proporei o abandono dessa dualidade entre ficção e realidade, trazendo para o cerne da discussão o estatuto da palavra no cinema de Pedro Costa, na qual não verei como distintas, as dimensões ordinária mítica. Continuar lendo
Artur Barrio – fricções entre arte e registro
Análise do filme Abertura I. De Artur Barrio.
Texto apresentado no X Encontro SOCINE, Ouro Preto, 2006.
O texto analisa o filme Abertura I, de Artur Barrio. Ele desenvolve o ponto de vista de que, ao adotar o filme Super8 – e mais tarde o vídeo – para o registro de suas ações e performances, os artistas não só conferiram uma nova dimensão ao seu trabalho, mas foram também levados a definir o estatuto de tais registros em relação às exigências de suas próprias obras; ao mesmo tempo, esta incorporação de uma nova dimensão as suas práticas artísticas lhes impôs o confronto com novas linguagens, dando origem a diferentes estratégias e procedimentos.
O filme de Artur Barrio é tomado como exemplar para o exame dessas múltiplas implicações do ato de registrar, tanto em virtude das fricções desencadeadas pela concepção que o artista tem do registro como mera “informação” sobre a obra, quanto das tensões que se estabelecem entre esta e as exigências próprias da linguagem cinematográfica. Continuar lendo
Um grão de vida
Os direitos do homem são axiomas: eles podem coexistir no mercado com muitos outros axiomas, especialmente a propósito da segurança da propriedade, que os ignoram ou, mais que os contradizem, os suspendem: “l´impur mélange ou l´impur côte-à-côte”, dizia Nietzsche. Quem pode aguentar e gerir a miséria e a desterritorialização-reterritorialização das favelas, senão as polícias e os exércitos poderosos que coexistem com as democracias?Qual social-democracia não deu ordem de atirar quando a miséria deixa o seu território ou gueto? Os direitos não salvam nem os homens nem uma filosofia que se reterritorializa sob o Estado democrático. Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo e é preciso muita inocência, ou safadeza, a uma filosofia da comunicação que pretende restaurar a sociedade dos amigos ou mesmo dos sábios, formando uma opinião universal como “consenso” capaz de moralizar as nações, os Estados e o mercado. Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanentes do homem provido de direitos. E a vergonha de ser um homem, nós não a experimentamos apenas nas situações extremas descritas por Primo Levi, mas nas condições insignificantes, diante da baixeza e da vulgaridade da existência de pensamentos-para-o-mercado, diante dos valores, dos ideais e das opiniões de nossa época. A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas vem de dentro. Não nos sentimos fora de nossa época, ao contrário, não paramos de fazer com ela compromissos vergonhosos. Este sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante delas. E não há outro meio senão dar uma de animal (grunhir, cavoucar o chão com os pés, nitrir, entrar em convulsão) para escapar ao ignóbil: o próprio pensamento está por vezes mais próximo de um animal que morre que de um homem vivo, mesmo democrata.
Qu´est-ce que la philosphie
Félix guattari, Gilles Deleuze.
Les Editions de Minuit, Paris, 1991.
p. 103.
A afrontosa frase do filósofo se presta muito bem como epígrafe a uma evocação do velho tema da função da imprensa no sistema midiático contemporâneo ou, mais precisamente, da sua mais decantada missão – a formação da opinião pública e desse seu tão mimando rebento, o consenso. Tratado numa chave crítica, o tema surgiu no filme de Costa Gavras, O quarto poder. Mas numa demonstração de que este tipo de postura tem dado o tom, já chegou também às portas das redações e estações de TV, que multiplicam suas colunas de auto-crítica, seus programas dedicados à ética jornalística, à auto-observação e a uma espécie de “controle’ da informação. Continuar lendo