A parte do segredo – Diário de Sintra e a interlocução do cinema com as artes plásticas

Diário de Sintra é uma evocação de Gláuber Rocha feita pela sua viúva, Paula Gaitán. Sintra é a cidade portuguesa onde o diretor viveu, com a família, até o seu fim prematuro. O “diário” se refere a um percurso no tempo, mas também no espaço; a penosa revisitação que Paula empreende do lugar, do passado; mas, também, do encontro de Paula com a paisagem, com a gente, com a luz, com o céu. São imagens atuais, alternadas com filmes e fotografias de Gláuber , dos filhos, a casa, da vida em família.

Imagens fixas, imagens em movimento – esse é o lote comum dos documentários que tratam do passado. Para trazê-las de volta, para trazer à vida as imagens do passado, a diretora passa pela exploração de novas potências das imagens fotográfica e cinematográfica e pela invenção de novas articulações entre elas. Diário de Sintra foi feito com gravidade e doçura, mas também com o arrojo de quem explora novos caminhos; por isso o filme estende o campo da fotografia, ao mesmo tempo em que abre o cinema para novas interlocuções.

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O “diário” é uma modalidade narrativa que esposa o fluxo do tempo – um fluxo que a imagem do cinema tem o dom de registrar. A fotografia, por sua vez, detém o fluxo narrativo: ela é uma parada que “separa o tempo de outro tempo” [1] e fixa o presente, fazendo dele passado – donde a inquietante e sempre lembrada ligação entre  fotografia e morte.

Paula Gaitán já fez uso da fotografia em outros filmes[2] – como em Vida ou Kogi;  mas, em Diário de Sintra, ela tem uma presença de destaque , que merece ser examinada .  É verdade que o filme trata da morte e da memória, do passar do tempo, do que ficou e do que foi perdido – experiências nas quais, a sua maneira, a imagem fotográfica também toca. Mas não é em virtude de sua dimensão fenomenológica que fotografia se destaca em Diário de Sintra. Se seu papel é tão decisivo, é porque a diretora leva em conta o lugar de destaque que a imagem fotográfica passou a ocupar no contexto mais amplo das práticas artísticas contemporâneas, um lugar no qual estão sendo redefinidas novas partilhas do mundo e da imagem.

Tentaremos demonstrar que a fotografia, ou o uso que dela é feito em Diário de Sintra   integra o filme a esse universo de novas partilhas, situando-o no cruzamento entre cinema, fotografia e artes plásticas.

Mutações e transformações

Numa análise das relações entre imagem fotográfica e arte contemporânea, a artista plástica Patrícia Franca destaca que, a partir das transformações do estatuto da fotografia na sociedade moderna pós-industrial , novas potencialidades foram nela despertadas e desenvolvidas, que a configuraram como um novo campo de exploração; e ao absorver funções diversas, ela teria ultrapassado os limites que regiam suas antigas relações com o real, abrindo-se para a experimentação. É assim que, ao lado das consagradas práticas fotográficas de cunho social, lúdico, documental, publicitário ou artístico, a artista chama atenção para a “emergência da autonomia da fotografia também como prática artística, em conseqüência dos desdobramentos recentes da arte contemporânea”: seja quando é usada de forma experimental, isoladamente ou acompanhada de outros objetos, quando é mostrada em diversos suportes, em sua forma mais banal e barata ou dentro de uma instalação, como um de seus componentes, a fotografia desempenha um papel maior na arte contemporânea.  Para a autora, a perda de algumas de suas funções tradicionais e o advento das novas tecnologias exauriram o “caráter procedural de representação do mundo, que era próprio da fotografia e a fizeram invadir a arte contemporânea”, dando origem a um “campo fotográfico heterogêneo e mutante” que estaria atravessando, nesse momento, uma “passagem crítica”: do questionamento da especificidade do médium, do seu domínio teórico progressivo, de suas referenciações formais – questões modernas por excelência -, para novas relações com o real e a matéria. Ao emancipar seu potencial de criação, conclui a autora, a fotografia dá lugar a “um campo inerente de pensamento” que escapa da linguagem herdada da crítica pictural, constituindo-se como um completo lugar de análise da imagem, propício para experimentações teóricas”[3].

É bom lembrar que as transformações que redefiniram o papel da imagem fotográfica e a tornaram mais “porosa” foram propiciadas pelo mesmo contexto que presidiu a uma mutação no próprio campo das artes plásticas, mutação que também o tornou mais permeável a novas interlocuções. É no rastro dessas mudanças que Diário de Sintra lança mão da fotografia para estender, por sua vez, o próprio campo do cinema.

Costuma-se apontar o surgimento do vídeo como um dos elementos decisivos para a configuração do que hoje se chama de “arte contemporânea”. Mas não foi só a incorporação dessa nova imagem que transformou as feições da arte após a segunda metade do século XX. Também a natureza das práticas artísticas foi profundamente revolvida, passando a incluir ações e a envolver o corpo dos artistas, a solicitar também o do espectador. A arte foi tirada dos museus e das galerias e levada para as ruas, as práticas dos criadores assumiram novas modalidades, deixando para trás os materiais tradicionais para tomar qualquer objeto ou material como sua matéria, e todos os lugares como seu lugar. A natureza: os campos, os caminhos, as árvores, a paisagem também foram revisitados, transformados e redimensionados pelas novas práticas artísticas.

Aqui entram apenas : Armadilhas de Luz de Giuseppe Perrone; e Metabiótica de Alexandre Orión.

Se as novas tecnologias da imagem contribuíram para a interlocução entre cinema, fotografia e vídeo, as práticas artísticas recentes também passaram a dialogar com essas três modalidades de imagem; é o que vemos nas instalações com fotografias e com o vídeo, e é também o que está reconfigurando o campo cinematográfico. Em artigo recente, André Parente observou que, dentre essas experiências – o cinema expandido, que busca a participação do espectador por meio de happenings e performances com projeções múltiplas ou em espaços outros; o cinema de atração, que privilegia a potência da imagem em vez do fluxo narrativo; e o cinema de exposição, de museu ou de artista, que espacializa a imagem e interrompe o desenrolar da narração – todas negligenciam o fluxo narrativo, preferindo atuar sobre alguma das dimensões constitutivas do dispositivo cinematográfico (arquitetônica, tecnológica ou discursiva)[4] (itálico meu).

Diário de Sintra não privilegia essa mesma via. Mas, se desde o título, o filme assinala sua  adesão à narrativa, ao inaugurar um uso “plástico” da imagem fotográfica, ele abre um novo tipo de interlocução do cinema com o campo das artes plásticas.

Fotografia como “imagem”.

Sejam de época, sejam atuais, os filmes estão articulados em continuidade em Diário de Sintra – às vezes a passagem entre eles é praticamente imperceptível. Com a fotografia, certamente tal continuidade não é possível. Mas se é próprio dela interromper o fluir da imagem cinematográfica, o grande feito de Diário… é seu modo de considerar a imagem fotográfica, de fazer valer seu  duplo caráter, como imagem e como objeto, “flexionando” o tecido narrativo do filme sem deixar que ele se rompa.  Se as imagens “só revelam parte do seu segredo”, como Paula diz no início do filme, há em Diário de Sintra algo da ordem do desvendamento, que pode ser entendido como a revelação de novos potenciais, tanto da imagem fotográfica quanto da imagem cinematográfica.

O uso mais comum da fotografia no cinema é o que a faz valer “como imagem”: isto é, ela está ali para mostrar o que representa. Mas, além de partilhar com outros filmes, momentos que privilegiam a fotografia como representação visual de Gláuber, Diário de Sintra vai mais longe: ele propõe certas “construções”, ao modo das intervenções e das instalações, nas quais a imagem fotográfica, disposta em determinados lugares, junto a outros objetos, num certo “arranjo”, afirma sua condição de objeto, abrindo no filme uma dimensão “plástica”.

O uso do termo “plástico” merece aqui uma precisão; pois ele não tem o sentido habitual que lhe é dado no cinema, correspondendo, antes, a modo  segundo o qual se constitui a cena para tais “construções”, ou à modalidade de mise-en-scène que elas introduzem. Vejamos como isto se dá.

Mesmo quando o filme não privilegia a fotografia/objeto, mas sua face “imagem” – ou seja, quando as fotografias estão ali como “retratos de Gláuber”, sempre se mostrará que esta imagem é “separada” da imagem cinematográfica, que não se “confunde” com ela. As fotografias nunca serão enquadradas de modo a “esposar” ou a “coincidir” com o quadro: reduzidas ou ampliadas, enviesadas em relação ao quadro, cortadas, vistas em zoom…, haverá sempre um artifício para que não esposem o continuum da imagem cinematográfica.

Aqui entram fotos fixas de Gláuber. Minutagem: 0.12.23; 0,12.37; 0.57.06; 0.12.48  (você pode eliminar duas delas, à sua escolha)

Além de tomar a fotografia como “objeto”, o filme pode também ressaltar, a um só tempo, as suas duas faces – imagem/objeto. Trata-se de situações criadas com as imagens fotográficas a partir da presença humana, quando as veremos sendo manipuladas (como os objetos), para serem olhadas (como imagens).

As “construções plásticas” – ou “construções plástico-visuais” – se apresentam  sob duas modalidades, que lembram por sua vez construções do campo das artes plásticas: dispostas sobre diferentes superfícies em certos lugares, elas se assemelham a “intervenções” no espaço; colocadas, junto com outros objetos, numa espécie de “arranjo”, elas lembram,  “instalações”. Na verdade, é difícil definir o estatuto dessas construções por meio de categorias das artes plásticas, já que ele não coincide (e nem poderia coincidir) inteiramente com nenhuma delas. No entanto, a aproximação contribui para uma definição pela diferença.

A intervenção

Chamei de “intervenções” as situações criadas sem a presença humana, por meio da “distribuição” das fotografias em lugares em geral inusitados, sem que o que está representado na imagem deixe de poder ser entrevisto e de “contar”. A maioria dessas fotografias é apoiada ou depositada sobre alguma superfície, mas elas podem também receber movimento de outro elemento ao qual estão associadas (água, ar…). Elas podem ser dispostas sobre mesas, sobre o chão, nas ruas, mas também sobre a terra, sobre pedras e rochas, em meio à natureza; podem ser espalhadas como que ao acaso, ou arrumadas em certos “arranjos”; podem aderir às paredes, aos muros, rochas e plantas ou ser penduradas nas cercas dos caminhos, nos varais, nos galhos e na folhagem; podem também estar sobre a água, boiando levemente, ou sendo levadas pela correnteza; ou ainda estar sob a água, quase imóveis ou levemente agitadas; atadas a algum objeto também podem ser balançadas pelo vento; soltas, podem ser por ele levadas. As fotografias podem ainda estar organizadas segundo diferentes critérios: enfileiradas, dispersas, em combinações, jogadas ao acaso… ; fixadas ou em movimento; em grupo ou sozinhas.

Aqui entram fotos de trabalhos contemporâneos e planos do filme. Planos: 0,08.27; 0.10.26; 0.25.24; 0.29.02;0.50.09; 0.31.15;1.13.30;1.17.30; 1.17.08; 1.25.59; 0.31.15; (pode eliminar 5 dos planos, à sua escolha).

 Trabalhos de artistas: Regina Silveira (Superherói); Umbrellas de Christo.

O termo “intervenção” é usado aqui muito livremente, como a colocação de um objeto retirado de seu lugar em outro, onde deve gerar um efeito. Na verdade, as intervenções no campo das artes plásticas – seja no espaço urbano, seja fora dele – se distinguem das “construções” do filme, por serem ações desenvolvidas num determinado lugar para questioná-lo, transformá-lo ou despertar nele potencialidades ainda não reveladas. Além de não ser este o objetivo do filme, as “construções” de Diário de Sintra se assemelham ainda a outras categorias de obras além das intervenções, como a land art e o site specific.

As “intervenções” do filme não são criadas para questionar o espaço,  mas para serem filmadas. Mesmo se o gesto de Paula “infunde” a imagem de Gláuber na paisagem, isto só se passa no plano da imagem cinematográfica; o que não tira das “intervenções” sua qualidade  estética, dada pela constituição da cena como lugar, no filme, das “construções”- construções que, por sua vez, remetem a modalidades consagradas do campo das artes plásticas. É assim que, diferentemente das tomadas do alto na chegada a Portugal, dos longos planos que acompanham o deslizar do trem, dos planos abertos sobre a paisagem, quando se trata de “intervenções” o plano mostrando a ou as fotos e seu entorno mais próximo será longo, “fechando” o espaço e eliminando as referências que permitiriam “localizá-lo”; assim também, a câmera seguirá o “caminho” das fotos distribuídas pelo chão, ou seu movimento quando levadas pela água, sem abrir o plano e conectá-lo a qualquer espaço identificável.

Por lembrarem “marcas” ou a “impressões” sobre superfícies “naturais”, as “construções” poderiam ser comparadas às intervenções de Francis Alÿs, que deixam seus traços na natureza; mas podem também ser aproximadas de a outras práticas artísticas, como os rastros das caminhadas de Richard Long e a land art ou os site specific  de Andy Goldsworthy, que diferem, quanto ao conceito, das intervenções; além disso, elas lembram ainda as obras  de earth body da artista cubana Ana Mendieta, que deixou a marca de seu corpo sobre a terra, na grama, etc.

Aqui entram fotos de trabalhos de artistas: Alÿs, Richard Long e Ana Mendieta

Se pensarmos que muitos dos trabalhos desses artistas são fugazes e que deles só podemos conhecer o registro, na maioria das vezes fotográfico, fica mais fácil aceitar a aproximação com as “construções” de Diário de Sintra .  Mesmo fazendo parte do projeto específico de cada autor, a “impressão” do corpo de Mendieta na grama, o fio da sombra sobre a praça de Alÿs,  ou a fileira de pedras de Long “tornam-se imagens”, assim como se tornam os “arranjos” de fotografias de Paula Gaitán.

A instalação

O filme começa com a construção de uma dessas “instalações”. A câmera em contra-plongée e em movimentos suaves mostra o céu, galhos secos de árvore, até surgir uma árvore sem folhas. Ela se aproxima, mostra os galhos mais de perto e, finalmente, vemos surgir uma foto de Gláuber presa com um pregador de roupa. Os movimentos da câmera continuam e vamos percebendo que mais e mais fotos estão sendo penduradas, até que ela recua e enquadra a árvore inteira coberta de fotos, como folhas. Um corte é seguido de um close da folha que cai num ralenti, como uma folha morta.

Plano da árvore: 1.04.06

A imagem da árvore com fotografias de Gláuber  evoca outra imagem, a dos lençóis que pendem das janelas das casas insuflados pelo vento, no início do filme – também vistos em contra-plongée e em plano longo. Além disso, a última imagem do filme é uma árvore seca, na qual alguém pendura roupa, reatando assim com a imagem dos lençóis.

Lençóis: 1.07.36

Plano da árvore: 1.25.59 (tirar essa imagem)

Com certeza essa imagem  pode ser interpretada no interior da narrativa do filme; mas não é esse aspecto que estamos focalizando no filme de Paula Gaitán.  Pela sua conformação, o conjunto da árvore com as fotos se aproxima de uma instalação[5] enquanto reunião, num dado espaço, de objetos extraídos de seu lugar original. A comparação também é válida naquilo que a instalação tem de “cenográfico” e “teatral” – assim como o filme “mostra” a construção, a instalação também o faz; mais que isso, ela “tem” de mostrar que está mostrando – uma estratégia que a   só vem confirmar. A diferença é que, na instalação, os objetos não “combinam” entre si para fazer um sentido: o que existe é uma “relação” entre eles e com o espaço, que cabe ao espectador elaborar. Na instalação os objetos não compõem um todo significante – como acabamos de ver com a árvore: as fotos penduradas como folhas “recompõem”, metaforicamente, o todo da árvore; além disso, a imagem da árvore seca seguida da imagem da árvore “coberta” de fotos  adiciona mais sentido ao conjunto; e a lenta queda da folha, ao final do plano, é como uma econômica condensação metafórica da morte.

Substituir a foto do trabalho Portikus pela foto do trabalho de Pipilotti Rist (arquivo Pipilotti 3).  Macieira inocente em montanha de diamantes. (Apple tree innocent on diamond Hill, 2003)- Uma projeção, galho de árvore com vários objetos brancos e translúcidos. 15´. Loop silencioso .

Assim como a árvore com fotos “faz” sentido, é passível de “interpretação”, também as fotografias depositadas no chão, nas pedras, ou em outras superfícies – as “intervenções” – são portadoras de significação e, como tal, “integram” a narrativa do filme. O que não impede que nos interroguemos sobre a cena que abriga tais construções e que as tomemos como irrupção de outra dimensão no filme, que comunga com procedimentos inaugurados por outras práticas artísticas, diferentes do cinema e a ele integrados por Diário de Sintra.

Vejamos como isso se dá. A instalação se faz num espaço delimitado dentro de outro espaço, por sua vez fechado – o museu ou a galeria – espaço a ser percorrido (“ativado”) pelo espectador; no filme cabe à mise-en-scène “criar” ou “delimitar” o espaço  em torno dos objetos, um espaço “fechado dentro de outro espaço”, o do próprio filme.  O espaço da árvore é único, separado, e não é possível identificá-lo. Os movimentos da câmera, o enquadramento e a escala do plano, são definidos segundo o número e a disposição das fotos na “construção”. A câmera descreve os arranjos, movimentando-se nas suas imediações; ela “rodeia” a árvore de modo a cerní-la como objeto do plano e, ao mesmo tempo, mostrar como a imagem fotográfica está sendo “encenada”.

Assim como nas “intervenções” sabemos de quem é a foto e a câmera tanto pode enquadrar a situação em plano fixo, fechado, quanto acompanhar em plongée o caminho que as fotografias desenham no chão, ou o seu deslocamento quando impulsionadas –  na “instalação” a câmera rodeia a árvore para cernir o conjunto, mas permite também a identificação da fotografia. O espaço “criado” pela mise-en-scène não é, entretanto, como nas instalações, um ingrediente “ativo”, “conformado” para receber o espectador – já que não podemos nele penetrar, nem percorrê-lo para aquilatar os objetos, suas posições; nem buscar, como faz a instalação, ler com o pensamento as relações que ali são propostas. Trata-se, antes, de uma instalação na imagem.

Como se pode notar, tanto nas “intervenções” quanto nas “instalações”, a fotografia tem duas faces: como objeto, ligado a outros objetos, ela determina a criação de um espaço próprio, compondo a “dimensão plástica” do filme; como imagem (mesmo que apenas “entrevista”), é o que ela “representa” – Gláuber – que confere o sentido final, tanto da instalação quanto da intervenção. Trata-se de filmar a “construção” de modo a dar conta da aproximação física da fotografia com outros elementos, de configurar o espaço a que tal aproximação dá origem,  permitindo sempre que a imagem seja identificada. “De modo a dar conta”- ou seja , não só a mise-en-scène é determinada pelo arranjo,como ela contribui também para configurá-lo.

A foto como imagem e como objeto

A outra modalidade do aparecimento da fotografia se efetiva, em Diário de Sintra, quando esta faz valer, ao mesmo tempo, suas duas faces,  como imagem e como objeto – ou seja, percebe-se que as fotos são de Gláuber , que são “imagens”, sendo, ao mesmo tempo, “objetos” manipulados  por quem os contempla. É o que acontecerá nas entrevistas do filme.

Objeto de crítica entre os estudiosos do documentário, em Diário de Sintra a entrevista rompe com as normas do gênero por meio do recurso inovador à fotografia, como objeto e como imagem. Na verdade, trata-se de uma presença mais “ativa” da fotografia, de um “experimento” que não só explora novos potenciais da imagem fotográfica e do cinema, mas renova a figura surrada da entrevista.

Agora  são mostrados a velhos habitantes da região vários retratos de Gláuber, para saber se alguém o reconhece: parece que eles foram encontrados ao acaso, e a câmera atesta a informalidade do encontro, como que “buscando” as pessoas na rua. Mas não se trata propriamente de entrevista: o filme não os identifica; quase não se ouvem as perguntas, só as respostas; não se vê quem oferece as fotos; a diretora se eclipsa, mas há sinais da presença da equipe.

A mise-en-scène não recorre ao habitual campo/contra-campo, sendo ainda determinada pela fotografia, pelo objeto-fotografia: a câmera se concentra na manipulação das fotos e na ação de examiná-las. Ela se põe muito próxima das pessoas, que já surgem com as fotos nas mãos, movendo-se entre rostos e mãos, de modo a manter as fotos no foco da atenção. A face “objeto” da fotografia é levada em conta, mas o centro da cena é a sua face “imagem”: os entrevistados a vasculham em busca de sinais, de pistas capazes de constituir um significante – um rosto conhecido.

Habitantes examinam as fotos: 0.20.48

O mesmo se repete com dois amigos de Glauber. A diretora de novo se ausenta da imagem e pouco aparece na trilha sonora. Agora, os dois interlocutores são identificados, as falas mais longas, mas também mal se ouvem as perguntas. A cena é de interior, as fotos estão espalhadas sobre a mesa. Eles manipulam os retratos, os objetos, mas também visam a imagem, que passa a interessar na sua função expressiva, na  capacidade de mostrar e desvendar novos traços, qualidades, afetos enfim. Em vez de os amigos falarem, como de hábito no documentário, do seu conhecimento “direto” de Gláuber, trata-se antes de um conhecimento “indireto”, pela imagem, que inova a entrevista e o gênero: eles falarão do Gláuber que ficam conhecendo a partir do que as fotos revelam; ou seja, do olhar do outro – o fotógrafo.

Amigos examinam as fotos: 1.04,32

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A interlocução que Diário de Sintra inaugura com as artes plásticas não extrapola o campo cinematográfico como fazem o cinema de atração, o cinema expandido e o cinema de exposição. Mas, permanecendo no seu interior, o filme realiza a proeza de estender esse campo “de dentro” ao desdobrar a imagem fotográfica em suas duas faces (imagem e objeto) , pondo-a em sintonia, por sua vez,  com modalidades recentes da arte contemporânea.

Texto publicado no livro Diário de sintra – Refflexões dobre o filme de Paula Gaitán. Rodrigo de Oliveira, Org. Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2009.

Stella Senra

Doutora em Ciências da Informação pela Universidade de Paris II. Ensaísta e pesquisadora das imagens cinematográfica, fotográfica e do vídeo. Autora de O último jornalista – imagens do cinema, Ed. Estação Liberdade, 2000, e de vários outros textos publicados em livros, revistas especializadas, catálogos e suplementos culturais de diferentes jornais.


[1] Logo no início do filme a voz de Paula recitará: Caminhos que levam a Sintra/ou talvez a lugar nenhum/imagens que ultrapassam a memória/e comunicam apenas uma parte de seu segredo/tempo perdido/tempo redescoberto/redescoberto/linhas fugazes/linhas que se entrecruzam/fluxo do tempo/é um tempo remoto/é um tempo presente/tempo que está separado de outro tempo/mas que se torna presente/a paisagem não é habitada/ é vivida/ela é vista por alguém que se encontra em exílio/em exílio.

[2] Em Vida e em Kogi, respectivamente de

[3] Franca, P. “Flash – Aparências e contornos” in A fotografia nos processos artísticos contemporâneos. Santos, A. e Santos, M.V, Org. Unidade Editorial da Secretaria Municipal de Cultura e Editora da UFRGS, Porto Alegre, 2004. Pp. 216-222.

[4] Parente, A.”Cinema em contracampo” in Cinema sim: narrativas e projeções: ensaios e reflexões. Katia Maciel Org. São Paulo, Itaú Cultural, 2008. PP 36-46.

[5] Jennifer Licht, curadora da primeira exposição de instalações no MoMA de Nova Iorque, de dezembro de 1969 a março de 1970, assim definiu a instalação: “O espaço agora é considerado como um ingrediente ativo, a não ser apenas representado, mas conformado e tornado característico pelo artista, capaz de envolver e mergulhar o observador e a arte numa situação de maior porte e escala. De fato, o espectador agora entra no espaço interior da obra de arte… e lhe é apresentado um conjunto de condições em vez de um objeto acabado. Trabalhando com o potencial quase ilimitado dessas circunstâncias ampliadas e espacialmente mais complexas, o artista é livre para influenciar, determinar e inclusive governar as sensações do observador. A presença humana e a percepção do contexto espacial tornaram-se materiais de arte. Cf.Huchet,S. “A instalação em Situação” in Nazario,L. e Franca,P. Org. Concepções contemporâneas da arte, Editora UFMF, Belo Horizonte, 2006. PP. 17-45. Para abordar as instalações recorrerei a uma parte da análise desse autor.

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