Artur Barrio – fricções entre arte e registro

Análise do filme Abertura I. De Artur Barrio.

Texto apresentado no  X Encontro SOCINE, Ouro Preto, 2006.

O texto analisa o filme Abertura I, de Artur Barrio. Ele desenvolve o ponto de vista de que, ao adotar o filme Super8 – e mais tarde o vídeo – para o registro de suas ações e performances, os artistas não só conferiram uma nova dimensão ao seu trabalho, mas foram também levados a definir o estatuto de tais registros em relação às exigências de suas próprias obras; ao mesmo tempo, esta incorporação de uma nova dimensão as suas práticas artísticas lhes impôs o confronto com novas linguagens, dando origem a diferentes estratégias e procedimentos.

O filme de Artur Barrio é tomado como exemplar para o exame dessas múltiplas implicações do ato de registrar, tanto em virtude das fricções desencadeadas pela concepção que o artista tem do registro como mera “informação” sobre a obra, quanto das tensões que se estabelecem entre esta e as exigências próprias da linguagem cinematográfica. 

                                  Artur Barrio: fricções entre arte e registro[1]

 A propósito de seus filmes, Artur Barrio costuma dizer que não se trata propriamente de « cinema », de uma outra modalidade artística assumida por sua obra, mas apenas de « registros » de situações momentâneas, com vistas à documentação e à divulgação. Barrio gosta de insistir na « precariedade » técnica como traço distintivo desses filmes, que estaria em sintonia com a própria precariedade das obras – estendendo a mesma advertência ainda à fotografia e às anotações que faz sobre seus trabalhos. Definitivamente excluídas do domínio da arte, estas formas de registro deveriam se limitar à mera função de informação – termo insistentemente citado nos escritos do artista – sobre trabalhos destinados, pela sua própria natureza, ao desaparecimento.

Apesar de reiterar tais advertências, são precisamente algumas dessas características, que teriam por função extrair as obras de Barrio do terreno artístico, que têm dado lugar à evocação de seus filmes no contexto desse território ainda movediço que reúne o cinema experimental, os filmes de artista e os registros de performances. Os filmes de Barrio, assim como muitos dos filmes de artista, partilham com certas obras do chamado cinema experimental características formais que derivam tanto dos traços deixados pelo modo de registro da ação (feito por fotógrafos amigos, ou « cúmplices »), quanto da forma como o material bruto é trabalhado na montagem. Como os registros de outros performers, eles insistem em deixar transparecer o caráter « improvisado » da filmagem, seus acidentes, o manuseio hesitante da câmera, incorporando uma série de « ruídos » (como perda de foco, movimentos falhos, desenquadramentos), que o cinema experimental pôs a proveito em algumas de suas obras mais notáveis. Também sua montagem sem cortes, que simplesmente « cola »o material bruto em função das exigências da duração da ação gera certas perturbações ou « descontinuidades » de ordem narrativa que foram muito exploradas pelo cinema experimental.

Se estas características permitem uma aproximação visual entre os filmes de Barrio (e de outros artistas) e o cinema experimental, o que os separa é a função diversa que elas assumem nessas duas manifestações. Assim, se no experimentalismo essas « marcas » atestam um intuito de « ampliação » e de « exploração » das potencialidades do medium – seja quando buscam explorar qualidades ou características do filme enquanto suporte, seja quando questionam a organização consagrada do discurso cinematográfico – nos filmes de Barrio, ao contrário, elas são reivindicadas como resultado de uma « redução » de tais potencialidades em nome do « mero » testemunho. Enquanto os  « erros » ou « ruídos » constituem, para o cinema experimental, um modo de fazer aflorarem propriedades ou atributos ainda em potencial na imagem cinematográfica[2] , nos filmes do artista esses mesmos erros pretendem atestar, inversamente, o « despojamento » do registro, dando lugar ao uso da imagem como simples « constatação » da ação, ou seja, como informação.

Barrio associa sua recusa da exploração da técnica e da « estética »  cinematográficas à precariedade de seus trabalhos.  « (…) já que o material empregado em meus trabalhos é precário, não vejo porque o registro tenha de ser ligado a aspectos técnicos perfeitos », escreve ele. A propósito de “Situação (T/T1)”, de 1970, o artista menciona a quebra do“ ritual técnico” em seus filmes « em favor do seu trabalho » (…) », destacando que « a situação de precariedade está desligada de qualquer compromisso estético-técnico » (no caso, com o cinema) [3]. (BARRIO,1970/75, p. 153-271).

Meu intuito é abordar algumas das questões suscitadas pelo registro da obra de arte, tomando como exemplo o trabalho “Abertura I”, de 1972. Procurarei, para tanto, situar a noção de informação no contexto das “fricções” que se estabelecem entre obra e registro; em seguida aventarei a possibilidade da existência de uma função poética do registro na obra de Barrio, fundada na correspondência sustentada pelo artista entre precariedade da obra e precariedade do registro.

Fricções

Ao incorporar, a partir do final dos anos 60, o filme Super 8 ao registro de suas performances, além de conferir uma nova dimensão ao seu trabalho, os artistas tiveram a preocupação de definir o estatuto desses registros em relação às exigências de suas próprias obras; esta incorporação impôs, por sua vez, aos criadores, o confronto de suas práticas artísticas com a nova linguagem, dando origem a diferentes estratégias e procedimentos.

Quando apontou uma sugestiva convergência entre o crescente desaparecimento da obra (notadamente com as performances e instalações) e a extensão das possibilidades do seu registro, a crítica Françoise Parfait tocou, sem dúvida, numa das antinomias mais sugestivas – e ainda pouco exploradas – da arte contemporânea[4]. Com o surgimento do Super 8 e mais tarde do vídeo e da imagem numérica, observa ela, tornou-se praticamente ilimitada a possibilidade de registro de obras efêmeras, assim como cresceu exponencialmente a possibilidade de criar novas modalidades de arte com estas imagens. Parfait aventa a hipótese de que talvez a novidade do ato de registrar, assim como a variedade de modalidades assumidas pelo registro, explique a dificuldade da crítica em lidar com o trabalho de ordem documental desenvolvido com e a partir da obra de arte. Assim, apesar da existência de uma certa sinergia, ou de uma “interação” entre a ação dos artistas e o seu registro, em geral a forma deste último nunca é comentada, observa ela, o filme ou o vídeo sendo ignorados na sua manifestação como imagem-movimento, organizados de acordo com critérios formais e discursivos particulares.

Apesar desse « desinteresse crítico », tanto os filmes quanto os vídeos de performances estão longe da objetividade ou da neutralidade que lhes é atribuída ou que reivindicam, constituindo o lugar de uma série de fricções entre a arte da ação e o seu registro, de novas formas de negociação ou de confronto com estas imagens que merecem atenção. O exame dos filmes de performances se torna inclusive mais produtivo quando são levados em conta  esses « atritos », por meio dos quais o cinema tanto pode  « enquadrar » a atuação do performer, quanto levá-lo a retomar do vocabulário cinematográfico algumas de suas figuras consagradas.

Ao conceber sua ação, o performer tanto pode ser pautado por certos limites do dispositivo cinematográfico – como a duração da bobina ou os limites do quadro – quanto confrontado com a inevitabilidade de certos « constrangimentos » narrativos; por sua vez, ao registrar a ação, a atenção do fotógrafo ao momento, ao ambiente e ao que se efetiva diante da câmera acaba por demandar, de sua parte, um padrão de desempenho que pode também ser equiparado a uma performance.

O primeiro elemento de ordem cinematográfica que « modula » a performance –  pensamos aqui no Super 8 – é a duração da bobina, aproximadamente 3 minutos, que obriga o performer a desenvolver ações mais curtas. Se as primeiras performances costumavam durar de 3 a 6 minutos – recorrendo, portanto, a uma ou duas bobinas – seu tempo passou a ser mais longo depois da gravação em vídeo, forma de registro praticamente sem limite de duração. Além desse condicionamento da ação, alguns procedimentos consagrados pela gramática cinematográfica  podem  também « encaminhar » escolhas « formais » por parte dos performers.  Françoise Parfait lembra, por exemplo, que o plano-sequência, preferido dos documentaristas pela sua pouca interferência na realidade da qual dá conta, é considerado o « equivalente cinematográfico” da performance; além do seu caráter de “testemunho objetivo” da situação filmada, ele atende a imposições técnicas que o registro da performance partilha com o cinema documental enquanto modalidades de mise-en-scène de uma fatia de tempo e de real : necessidade de iluminação, de que tudo se passe no quadro e na duração da ação. Para esta crítica, também a insistente opção dos performers pelo plano fixo (em geral frontal), que faz valer o caráter « testemunhal » desse tipo de imagem ao mimetizar a postura de um espectador imóvel, tira proveito da tradição cinematográfica por evocar a « inocência » das suas origens – as chamadas “vistas” dos irmãos Lumière. A esta frontalidade  “espacial” acrescente-se o que o experimentalista e Hollis Frampton chamou de “plano frontal da temporalidade”, ou de “absoluto” da imagem cinematográfica – o seu eterno presente – tempo no qual os performers inscrevem suas ações[5].

Muitas performances optam pela câmera na mão, procedimento consagrado no cinema, tirando proveito da suposta espontaneidade e frescor que ela confere às imagens e a sua capacidade de criar uma impressão de cumplicidade entre o fotógrafo (e o espectador) e a cena filmada. Além de fazer valer as injunções do dispositivo técnico e da retórica cinematográfica, o desenvolvimento de uma narrativa no cinema não deixa de “parasitar” o registro das performances, levando às vezes à repetição de certos “hábitos” narrativos.

Desde que se tornou possível registrar as ações dos artistas, variadas modalidades de arranjo entre a ação e o seu registro têm sido experimentados. Enquanto alguns performers estabeleceram regras rígidas para o seu uso, minimizando a fricção com o cinema, outros perceberam o potencial da nova combinação, fazendo da articulação entre performance e cinema um novo campo de experimentação. Contemporâneos de Barrio, Marina Abramovic e Vlay pertencem ao primeiro grupo, impondo regras estritas ao uso da câmera nas suas performances. Para registrar suas ações, fizeram uso exclusivo da câmera estática, enquadrando apenas o espaço da performance; recusando o corte e a montagem, costumavam utilizar todo o material registrado; além disso, para realçar o efeito de autenticidade, os artistas sempre recorreram a certas estratégias como durações sem premeditação, abstração ou evacuação do cenário, concentração da imagem sobre o essencial da ação.

No pólo oposto, um dos exemplos mais interessantes de experimentação é o trabalho de Paul McCarthy, outro contemporâneo de Barrio que, desde os anos 60, já fazia da própria combinação da ação e do seu registro um novo “campo” de trabalho a ser explorado: Mc Carthy realizou performances para o público, registrando-as ao mesmo tempo; sem público, outras foram registradas, por amigos; ele também apresentou performances só para a câmera, ou registrou ações sem público, para depois mostrá-las no ambiente em que foram realizadas; além disso, fez instalações, sem público, com elementos perecíveis – como a carne ou fluidos corporais – deixando-os no local para serem percebidos mais tarde pelos visitantes..

Recorrendo à câmera de amigos[6], Barrio sempre filmou suas ações em continuidade, evitou o corte, recusou-se a montar seus filmes e a usar o modo habitual de mostrar os créditos. Tais restrições ao registro de performances, também sem público, estão fundadas na recusa  do que ele denomina qualquer tipo de exploração « expressiva » das imagens. Apesar desta definição rígida do estatuto do registro, que o distancia dos experimentos de um Mc Carthy, por exemplo, Barrio nunca perseguiu, como Abramovic e Vlay, a « frieza» do documentário : sua câmera é colocada a uma certa distância da performance, de modo a evitar a « objetividade » geralmente associada a esse tipo de registro,  mas próxima o suficiente para convidar o espectador à participação. Ele recorreu também à câmera na mão, buscando uma dinâmica que mimetizaria o olhar do espectador: Barrio pede ao seu fotógrafo não o recuo do mero observador, mas, antes, « todo um envolvimento (…) (nos) aspectos (…), emocionais, (…) um «  comportamento psicológico (…) diante de (…) situação que geralmente provoca uma série de situações e acontecimentos nunca estáticos, tanto física quanto psicologicamente (…) »[7]. (BARRIO,1970-1975, p. 153-271). Tais salvaguardas com vistas a neutralizar “o cinema”, acompanhadas de recomendações para captar a coloração « emocional », « psicológica », « o meio-ambiente » da performance – esta espécie de double bind imposto ao fotógrafo – tornam os filmes do artista exemplares da “modulação” propiciada pela fricção que buscamos destacar entre arte e registro.

Referindo-se a esse tipo de fricção, ou de atrito, o crítico Carlos Basualdo  confere à relação entre obra e registro no trabalho de Barrio o caráter de « uma relação carnal, irresolvida e sem solução”, entre informação sobre a obra e a sua ausência. Se Barrio escolheu para suas performances terrenos baldios, espaços “desmarcados” e usou materiais perecíveis, não “estéticos”como lixo, terra, fluidos corporais, papel higiênico em trabalhos destinados ao desaparecimento, evoca o crítico, o registro, ou a última “encarnação” da obra de Barrio seria marcado “pela vontade, de certa forma inalcançável, de transformar-se em informação pura e estrita[8]. Retomando esse diagnóstico de “irresolução” da obra de Barrio, vale a pena examinar a impossibilidade de “pureza” da informação sob o prisma da fricção entre arte e registro.

A performance

A ação “Abertura I” é concentrada no espaço e no tempo: ela se passa numa espécie de quintal que o quadro fechado não permite identificar, sem público. O artista atua diretamente para a câmera. A abertura evocada é a de uma garrafa de Coca-cola, objeto de muitos trabalhos de forte ressonância política no período (lembremos Cildo Meireles com suas “Inserções em circuitos ideológicos”, 1970, mensagens gravadas em garrafas de Cocal-cola devolvidas à circulação: Yankees, go home; Jesse James no; Pavio, fita, gazolina). O fundo monocromático – o pano amarelo que cobre a mesa – contra as folhas verdes por detrás anuncia a conotação política do trabalho – intenção que, somada à Coca-Cola e às calças jeans do artista, não deixa dúvidas quanto ao “vitorioso » e ao “perdedor”a que se refere o trabalho.

A Coca-Cola de Barrio foi pomposamente envolvida, como uma garrafa de vinho, por um guardanapo branco, sugerindo uma comemoração, ou melhor, o deboche de uma comemoração em pleno período da ditadura militar. Com efeito, há um tom de desforra na cena, que opõe à abertura solene de uma garrafa de vinho em comemoração a um grande acontecimento, a tosca perfuração da tampa da Coca-Cola com uma faca, e sua desajeitada abertura com saca-rolhas. Servido o líquido num copo, o artista acentua o desafio ao sacudir a garrafa gargalhando, e ao fazer jorrar a Coca-Cola com selvageria. Numa inspiração ao gosto do período do chamado « desbunde », o espirrar/esporrar da garrafa se quer como uma derrisão (em relação aos vencedores) e, ao mesmo tempo, gesto libertário (dos perdedores) – intenções sublinhadas pela nudez parcial do artista, pelo sugestivo modo de sacudir e fazer “esporrar” a garrafa, e pela insistência do big close na espuma/porra que escorre de sua boca.

O filme

Como acontece com outros filmes de Barrio, o enquadramento da imagem não deixa identificar o local da cena, enquanto o tempo da ação se submete à duração da bobina. A ação é rápida e se concentra numa área pequena, o que determina movimentos pouco amplos do artista, evitando tanto sua saída do quadro quanto o excessivo deslocamento do fotógrafo.

Em nome da « contenção » que Barrio impõe aos seus registros, aqui temos apenas dois planos e um único corte. A câmera na mão se movimenta apenas o suficiente para não perder de vista os gestos do artista. O campo fechado e a limitação de movimento impõem  restrições à escolha de planos dentro da tipologia cinematográfica: são planos próximos, closes e planos um pouco mais abertos, quando os gestos se ampliam. Como notou Parfait a respeito das preferências desse tipo de registro, aqui também se trata de planos-seqüência, dois, que combinam de modo equilibrado duas funções: uma, descritiva, tem por objetivo mostrar o lugar no qual se concentra a ação e os objetos envolvidos nela; a outra visa dar conta da ação.

A ação é delimitada por dois closes da garrafa, um no início e outro no final da cena. O primeiro plano-seqüência intervém ao final da apresentação do lugar, “introduzindo” a ação: um plano próximo da mesa em leve plongée mostra uma “natureza morta”, esta figura tradicional da história da pintura, composta por uma garrafa, um abridor, uma faca; o segundo close pontua o final da ação e do primeiro plano-seqüência, com a volta à garrafa para mostrar o líquido que escorre da sua boca e enquadrar em seguida o copo de Coca-cola com gelo.

No início da ação o quadro permanece fechado; a câmera, vacilante, move-se apenas para acompanhar de perto os gestos do artista; depois que este recua o plano se abre, criando uma distância maior para captar seus movimentos. O plano volta a se fechar sobre a mesa ao final da ação, quando Barrio devolve a garrafa ao seu lugar e “arranja” o copo ao seu lado.

Encerrados a ação e o primeiro plano-seqüência intervém o único corte, voltando-se ao mesmo fechamento do plano inicial: a câmera, sempre na mão, agora está à altura da mesa, “quebrando” de certa forma a suposta imobilidade do espectador. O segundo plano-sequência começa com outra natureza morta na mesa: deslocando-se depois lentamente à direita e subindo um pouco, a câmera mostra então um cartaz com os créditos do filme, que o artista sustenta por trás – gesto que tanto remete à precariedade reivindicada por ele quanto pode ser lido como uma outra forma de “assinatura”. Aos poucos o cartaz é enquadrado no centro da tela e a câmera desce, mimetizando o movimento de leitura[9] .

Esses dois recursos: a posição próxima da câmera e o plano frontal têm por objetivo restituir a coabitação virtual entre performance e espectador, mimetizando a posição deste último diante da cena e instituindo uma certa “cumplicidade” com ele. O fechamento dos planos cria, de fato, uma certa intimidade com o que se passa, intimidade acentuada, em seguida, pelos dois closes na garrafa que “pontuam” um filme de apenas dois minutos: o close inicial, que retoma uma figura tradicional do vocabulário cinematográfico, “antecipando” a ação, e o seu contraponto, que assinala o seu encerramento (se deixarmos de lado os créditos ao final do segundo).

Além de terem uma posição de destaque no filme por “enquadrarem” a performance, são esses closes que “inscrevem” mais diretamente o registro da performance na retórica cinematográfica: é o primeiro deles que introduz a ação e o último que a encerra. Notemos ainda que a intimidade criada por esses closes também contribui para acentuar essa inscrição: a aproximação da cena a que ambos dão lugar é, digamos, “inusitada” já que o espectador imóvel estaria, a princípio, mais distante da ação; além disso, por se tratar de um procedimento cinematográfico consagrado pelas fortes cargas afetivas que mobiliza, os dois closes na verdade “restituem” (e reiteram) o olhar habitual do espectador de cinema, “desnaturalizando” a posição que Barrio almeja para o seu público virtual.    .    .

Além de apontar estas fricções, cabe ainda uma observação de caráter mais geral: o registro parece atender, no discurso de Barrio, a duas funções diferentes que se recobrem – não sem alguma ambigüidade.  A primeira seria aquela que o próprio artista designa: dar conta da ação evacuando o cinema, limitando ao mínimo o uso de seus recursos; a segunda, a qual se pode atribuir um caráter poético, estaria na vinculação desta “evacuação” das exigências técnico-estéticas do cinema – a precariedade do registro – à própria precariedade das obras.

Examinemos mais de perto essa segunda função. Se em “Abertura I” pudemos observar tanto a tentativa quanto os impasses gerados pelo intuito de escapar do “cinema” – ou da “estética cinematográfica”-, as observações de Carlos Basualdo acima referidas apontam, na verdade, para a ambigüidade que permeia os registros de Barrio. Com efeito, se esse crítico identifica no trabalho do artista uma “poética da precariedade”, baseada na vontade de refletir “não na perspectiva da historia da arte, mas da realidade sócio-econômica e das condicionantes éticas do terceiro mundo”; e se ele aponta ainda o resto (os materiais usados), o recanto (o lugar da obra – o terreno baldio), assim como a fotografia (como máquina de fabricar ausências), como as três coordenadas que constituem esta poética[10](BASUALDO, 2002, p. 237-271), parece que, de seu ponto de vista, o próprio ato de registrar teria também, na obra de Barrio, uma função poética. Com efeito, se o “despojamento” da opção estético-poética de Barrio está em correspondência com o “estagio sócio-econômico do terceiro mundo”, não é apenas a escolha dos materiais e do lugar da obra que tem um caráter “expressivo”; também o registro parece ultrapassar, nessa visão do crítico, sua condição de “informação pura” para assumir essa mesma correspondência que rege a escolha dos materiais e o lugar da obra. Não é por acaso, assim, que outros críticos além Basualdo evoquem uma sintonia entre a obra de Barrio e a de Glauber Rocha – justamente ele que propôs a criação de uma estética cinematográfica, a “estética da fome”, fundada precisamente na precariedade técnico-estética do terceiro mundo.

Resta um último comentário, de ordem mais geral. No atual momento vivido pela arte contemporânea, em que não só as formas de registro se tornaram cada vez mais operacionais, mas também em que as práticas estéticas passaram a lhes conferir novas e insuspeitadas funções, cabe uma reavaliação do estatuto dos filmes de Barrio. A arte contemporânea vem operando, cada vez mais, com uma « perturbação » de identidades e funções que não deixa de atingir o estatuto dos « registros » dos trabalhos dos artistas [11]. Trabalhos ou performances filmados, videografados, transmitidos on line, todo esse tipo de material cujo estatuto ainda padece de alguma indecisão tem conquistado espaço nos circuitos de arte, em galerias, museus, sendo não apenas apresentado “no lugar” do evento registrado, mas também contemplado com mostras especificas do gênero” vídeo de artista”, “filme de artista” , livro de artista”, etc. Tal perturbação de identidades e funções, mais que uma contingência da execução da obra ou da necessidade de sua perenização, parece ter se tornado um dos « trunfos » da arte contemporânea, uma de suas « estratégias », enquanto o próprio cinema, por sua vez, diluindo os antigos limites entre « comercial » e « artístico », passa a integrar cada vez mais intimamente certo tipo de obra –  como as instalações, por exemplo.

Enquanto esse estado de « suspensão » atinge o estatuto do registro e se multiplicam as mostras a ele dedicadas, alguns artistas tomam a dianteira deste processo, interrogando diretamente a própria noção de registro no interior de sua produção artística. É o caso de Rirkrit Tiravanija, em cuja retrospectiva Une retrospective – Tomorrow is another day (Musée d´Art Moderne de la Ville de Paris, fev/março de 2005) nenhum trabalho e nenhum registro estão expostos, mas três personagens – um ator, um guia e um fantasma (uma voz gravada) “narram”, peça por peça, a sua obra [12].

Se passarmos em revista o número de exposições e de mostras que contemplaram os registros de Barrio nos últimos anos, fica evidente quão propício o atual contexto das artes tem sido para a incorporação desses trabalhos considerados « não artísticos » no universo da chamada arte contemporânea; e quão mais problemáticos se tornam, na sua obra, a irresolução entre informação e o desaparecimento da obra – ou seja – a sua concepção do estatuto do registro.


[1] Para este texto foi examinada cópia em vídeo do filme.

[2] O apreço do cinema experimental pela exploração das características materiais da imagem  se deve em parte ao surgimento das câmeras Super 8, que teve papel de destaque na revitalização da vertente americana do cinema experimental dos anos 60.

[3] BARRIO, A. “Da qualidade técnica do registro ou precariedade”, in CANONGIA, Lígia (Org). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Modo Edições, 2002. p. 153-271.

[4] PARFAIT, Françoise. Video : un art contemporain. Paris: Editions du Regard, 2001, p.59-60.

[5] FRAMPTON, Hollis. L´écliptique du savoir – film, photographie, vídeo. Paris: 1999, p.90-91.Ao distinguir cinema e vídeo, Frampton desloca a concepção de plano cinematográfico do espaço para o tempo, mencionando  as complexas invenções do cinema para escapar do “absoluto” da imagem cinematográfica, o seu eterno presente. A chegada do vídeo teria propiciado uma “dissolução”, ou uma “fluidificação” de todos os segmentos da unidade temporal, devido a sua capacidade técnica de registrar em continuidade toda a ação na sua duração real.

[6] Boa parte dos filmes e da documentação fotográfica do trabalho de Barrio foi feita por  César Carneiro, cuja magnífica produção fotográfica permanece praticamente desconhecida.

[7] BARRIO, Artur. Op. Cit. p. 153.

[8]  Basualdo, C. « Contra a eloqüência : Notas sobre Barrio – 1969-1980 » in CANONGIA, Lígia, op. cit. p. 236.

[9] Também  os créditos do filme devem conotar a precariedade do trabalho. Em dois outros de seus filmes ele prefere mostrá-los ao vivo, explicando:  « Esses dois registros (Situação T/T1) não são montados e muito menos têm titulo, o que resulta na apresentação de um cartaz escrito ou oral em suas apresentações ». BARRIO, Artur. Op. Cit. p.153-271.

[10] BASUALDO,Carlos.  Op. cit. P. 237

[11] Blouin,P. During,E. e Zabunyan, D. «  Entretien avec Jacques Rancière – L ‘ affect indécis »,  Critique- revue générale des publications françaises et étrangères, Paris, n. 692-693, jan/fev de 2005.  

[12] Em recente entrevista a Lisette Lagnado, o artista define claramente sua posição quanto ao registro : «  Eu me esforço muito para não privilegiar as imagens posteriores, para não fazer documentação nem ter consciência do efeito do trabalho, que toma muitos rumos. E para não usar imagens como respresentação do evento (convertendo-a no próprio trabalho). Prefiro abrir mão da imagem. (….) Mas acho que o que me interessa não é fixar o tempo ; não é uma experiência que possa ser captada em uma única imagem ou em um único instantâneo ». Indagado a respeito da distância do seu trabalho em relação à platéia e de seu possível estranhamento, o artista acrescenta : « Quem sabe, mais do que uma relação com a fotografia, tenha a ver com o cinemático, e talvez o estranhamento se deva ao fato de que nem sempre podemos nos enxergar nele. Tem muito a ver com o movimento e movimentações, com caminhos e rastros, mas nada é ou precisa ser fixado ». Lagnado.L « Contra a nostalgia. O artista Rirkrit Tirabanija, convidado da 27a Bienal de São Paulo, defende uma outra experiência do tempo e da arte », entrevista.  Revista Trópico,7-11-2006. http//pph.uol.com.br/tropico/html

Stella Senra

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