Como animais que morrem

O texto propõe uma ampliação do debate sobre o documentário, levando em conta dois fenômenos concomitantes: a inauguração e generalização, na sociedade contemporânea, de novos usos da imagem e, sobretudo, da sua introdução no campo das artes plásticas; a necessidade de buscar um novo olhar sobre o Brasil, capaz de abarcar as transformações pelas quais o país passou nos últimos vinte anos.

Palavras-chave: Artes plásticas. Visualidade.  Mercado.  Consenso.

“O artista ou o filósofo são incapazes de criar um povo, eles só podem chamá-lo, com todas as suas forças. Um povo só pode criar-se em meio a sofrimentos abomináveis e não pode  se ocupar de arte e de filosofia. Mas os livros de filosofia e as obras de arte comportam também sua quota inimaginável de sofrimento que faz pressentir o advento de um povo. Eles têm em comum a resistência, resistência à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente”.

Gilles Deleuze e Félix Guattari

Qu´est-ce que la philosophie.

                                                                  1

Um dos motivos do interesse sempre renovado pelo documentário e razão, talvez, da sua grande vitalidade vem da convergência que ele cultivou, ao longo de sua história, entre busca estética e postura política. Apesar do prestígio de que o gênero tem beneficiado nos últimos anos no Brasil, o crítico Jean-Claude Bernardet (2003; p 8)detectou uma “acomodação” na produção mais recente, em virtude de um rebaixamento da sua “contundência política” e da  tendência a uma certa “complacência estética” [1].Acatando esse diagnóstico, tentarei dar prosseguimento à discussão propondo, no entanto, um deslocamento em relação ao campo em que ela tem se situado. Ao buscar ampliar os limites do debate, meu intuito será contribuir para o restabelecimento desta convergência entre estética e política, decisiva para a vitalidade do documentário

Na esteira desse prestígio de que o documentário passou a desfrutar, a discussão sobre o gênero também se intensificou entre nós nos últimos anos. Mas esse debate poderia ser ampliado e  enriquecido se fosse levado em conta o surgimento, no mundo contemporâneo, de uma nova sensibilidade a partir da emergência de dois fenômenos concomitantes que, embora extrapolando o campo delimitado do documentário, têm sobre ele forte incidência: a inauguração e a generalização, na nossa sociedade, de novos usos das imagens; e a sua introdução e emprego recorrente  – aqui penso sobretudo nas imagens documentais – no campo das artes plásticas. Sem esquecer os efeitos avassaladores do excesso de imagens a que estamos cotidianamente submetidos e que tem por conseqüência a sua máxima banalização, a proposta de um deslocamento de foco deveria ser acompanhada ainda de uma exigência hoje incontornável: a interrogação sobre o Brasil, a busca de um novo olhar capaz de abarcar as transformações pelas quais o país passou nesses últimos vinte anos[2].

Partindo do redimensionamento do campo artístico nas duas últimas décadas, é imprescindível chamar atenção, antes de tudo, para as duas grandes transformações relacionadas a esses novos usos das imagens: a incorporação, pelas práticas estéticas contemporâneas, das mais variadas modalidades de imagens: fotografia, vídeo, cinema e, muito especialmente, das próprias imagens documentais; e a introdução, em conseqüência dessas práticas, de  certa confusão de identidades e funções que viria romper as fronteiras entre os diferentes gêneros (particularmente entre documentário e ficção) e embaralhar os diferentes tipos de imagens.

Consideramos que tal rearranjo do campo artístico tem sua incidência sobre o documentário e deve levá-lo a colocar em questão muitas das certezas acalentadas ao longo de sua história, a se interrogar sobre seu estatuto, seus fundamentos e sobre a privilegiada relação que sempre reivindicou com a realidade. Além disto o surgimento, fora do campo artístico, de novas práticas introduzidas pelas mais recentes técnicas de geração e distribuição de imagens também contribuiu para minar as fronteiras antes mais claras do gênero, pondo em cheque algumas de suas mais caras certezas: lembremos que muitas das imagens que documentaram o Tsunami  e foram divulgadas em todo o mundo não provieram de fotógrafos profissionais, mas de telefones celulares de indivíduos presentes no local; e que a Internet pulula de pequenas cenas (um assalto, um incêndio, um fait-divers), igualmente captadas por não profissionais com suas câmeras digitais ou celulares – sem falar desses personagens que instalam câmeras em suas casas e “documentam” literalmente seu cotidiano por meio da rede.

Fazendo valer um suposto “frescor” e uma maior “credibilidade” destas novas imagens, que teriam o dom de “rejuvenescer” as surradas imagens documentais, jornais e televisões têm, por sua vez,  contribuído para obscurecer ainda mais os limites entre a produção dos profissionais e a dos não-profissionais, recorrendo à colaboração desses últimos, que acabam se apropriando de uma função até então exclusiva de jornalistas ou documentaristas. Recentemente a Agência France Presse confiou máquinas fotográficas a duas famílias – uma israelense e outra palestina – em busca de um outro ponto de vista sobre o conflito do Oriente Médio; enquanto isto, a revista de esportes L´Equipe Magazine pedia aos seus leitores fotos de estrelas do esporte que eles por acaso cruzassem no supermercado.

Além dos efeitos da exploração dessas imagens por assim dizer “espontâneas”, devemos destacar ainda o imenso desgaste das imagens “profissionais”, em conseqüência de sua profusão e superexposição por meio da mídia, que se tornou ao mesmo tempo global e cada vez mais invasiva no que toca à intimidade de cada um. Tal extensão e intensidade da difusão das imagens, sua presença insistente parecem ter gerado no público uma espécie de indiferença, que acaba tornando todas as imagens equivalentes entre si, reduzindo-as à mera insignificância.

Neste contexto que dá lugar, por um lado, à banalização das imagens, mas que, por outro, permite novas explorações e experimentações, as fronteiras do documentário tornam-se, de fato, mais vulneráveis – um fenômeno que não deve ser tomado como redutor de suas possíveis potencialidades, mas, antes, como um estímulo à busca de novas modalidades de “construir” o real, ou, para usar outra forma de expressar a função do documentário, de testemunhar pelo seu tempo.  Em lugar de se entrincheirar no seu território, de defender suas fronteiras e de se empenhar na salvaguarda da sua identidade, o documentário poderia, ao contrário, aproveitar-se desse momento de ebulição para buscar reaprender a ver, a ensinar a ver (já que o objetivo didático sempre esteve no seu horizonte). Um programa que não apenas implicaria um diálogo, uma troca com as outras modalidades de imagens, mas que deveria também dar lugar, no caso específico do Brasil, à construção de novas maneiras de pensar o país e de encarar o tão acalentado “compromisso histórico” a que o documentário sempre procurou atender.

Por um lado buscarei me concentrar na convergência das duas vertentes: busca estética e postura política, explorando o terreno movediço do encontro e do confronto entre diferentes tipos de imagens que podem propiciar o surgimento de uma nova sensibilidade. Ao tomar em consideração a situação específica do Brasil buscarei, por outro lado, afirmar a necessidade da invenção de novos parâmetros para se considerar o que Eduardo Escorel já chamou, certa feita, de “enigma” Brasil.

Em relação ao primeiro ponto, gostaria de relatar três experiências recentes muito significativas da exploração de novas modalidades de percepção e de “construção” do real. Trata-se de três exposições realizadas em Paris, nem todas de arte, nem necessariamente de imagens móveis, que se tornam significativas justamente em função de sua realização no mesmo momento – o ano de 2006. Esta coincidência pode ser trabalhada do ponto de vista

do surgimento de uma nova sensibilidade às imagens, ou de uma transformação recente da percepção. É dela que procurarei extrair elementos para reflexão.

A primeira não é propriamente uma exposição de arte. Trata-se de uma pequena mostra intitulada “Biometria”, montada na Cité des Sciences & de l´Industrie – espaço parisiense de exposições sobre temas atuais e de caráter didático para jovens. A biometria é um conjunto de técnicas informáticas, utilizadas para identificar automaticamente uma pessoa a partir de características físicas como impressão digital, rosto, íris, mão, ADN. Além de propor informação qualificada e sucinta sobre os aspectos sociológicos, políticos e antropológicos da biometria, o que chamava atenção nesta exposição era o convite feito ao público para experimentar as diferentes técnicas por ela acionadas: para ter acesso à sofisticada tecnologia a sua disposição ele devia, em primeiro lugar, se colocar diante de uma câmera de vídeo para registrar sua imagem  – como se faz hoje na entrada de prédios e empresas; após esta identificação, ele podia escanear sua impressão digital, conferir a forma da sua mão, registrar a sua íris. Numa série de operações que exigiam o deslocamento do público, a manipulação e a familiarização com os vários equipamentos, a exposição visava criar intimidade com as diferentes técnicas e acurar o olhar do espectador para os dados coletados sobre sua figura. Confrontado e levado a se familiarizar com novos equipamentos técnicos, ele ainda tinha a oportunidade de descobrir os inúmeros usos sociais, as questões jurídicas e políticas que o emprego dessas novas técnicas tem suscitado em diferentes partes do mundo.

Ao mesmo tempo, a Fondation Cartier pour l´Art Contemporain, um espaço dedicado à arte,  mostrava uma exposição completamente diferente, do escultor inglês Ron Mueck, que se tornou conhecido pelo “realismo” extremado de suas figuras humanas, sempre nuas e sempre deslocadas de suas dimensões reais.

Apesar de muito distintas, parece-me que algo de muito importante aproxima estas duas exposições: a constituição de estratégias de deslocamento do espectador no espaço em busca de um novo “lugar” onde se postar. Ambas exigiam do público uma aproximação extrema (dos dispositivos ou das esculturas), um exame acurado do que era oferecido ao olhar; em ambas o público era levado a executar movimentos muito semelhantes no espaço, ora se aproximando dos objetos, ora se distanciando, ora focalizando de muito perto e com muita minúcia, ora mais de longe o material exposto. Não sendo uma exposição de arte, a primeira buscava por em evidência o recurso meramente utilitário à imagem, mostrando como criar imagens destinadas à identificação dos seres humanos, como gerir o seu uso e como gerar estratégias para familiarizar os espectadores com as operações de identificação e autenticação. A segunda, de um artista reconhecido, tinha outro objetivo, mas acabava, como a primeira, dando origem aos mesmos deslocamentos espaciais dos espectadores, à construção de verdadeiras “estratégias topográficas” com o propósito de melhor contemplar os objetos – nos dois casos, a figura humana.

Aparentemente semelhantes, as estratégias destas duas exposições buscavam resultados bem diferentes. Enquanto na primeira as imagens eram colocadas a serviço de sua função mais privilegiada na sociedade de controle descrita por Deleuze – identificar – e exigiam uma adesão, ou uma sintonia perfeita entre o olhar do espectador e o dispositivo técnico, na segunda os seres humanos de dimensões exageradas ou reduzidas de Mueck não tinham por objetivo familiarizar o público com o que era mostrado; ao contrário, eles visavam criar uma espécie de estranhamento.

As figuras humanas de Mueck têm o dom de criar uma espécie de des-sintonia entre o olhar e o objeto, des-sintonia que dá origem a um redimensionamento do olhar do espectador. Suas peças são conhecidas pela perfeição quase absoluta, pela sua semelhança perturbadora com os humanos “reais”. Mas tal perfeição, assim como seu desajuste de proporções não constituem um objetivo em si, contribuindo, antes, para interrogar – ou construir – o olhar do público. Ao contemplar a sala da exposição cheia de visitantes, o espectador podia ver se constituírem, como que naturalmente, pequenos grupos compactos de pessoas curvadas sobre as peças menores, num exame acurado de seus detalhes espantosos (as veias sob a pele, os pelos despontando, as pequenas manchas e imperfeições da pele); enquanto isto, as peças de grandes dimensões exigiam um outro tipo de movimento, uma espécie de balé a sua volta, o público ora se aproximando para melhor examinar os detalhes, ora recuando tentar captar o todo.

Essa espécie de dinâmica na qual o espectador se vê envolvido pelo trabalho de Mueck na verdade o remete, ou o põe “face a face” com o seu próprio olhar. Quando se aproxima ou se afasta, ele está de fato procurando o ponto ideal – ou os pontos ideais – de onde “olhar” tais construções. Ora, não ter ou não reconhecer o seu lugar de espectador, ter repetidamente de procurar um ponto de vista, avançando e recuando passo a passo para construí-lo e reconstruí-lo a cada instante – este não seria um modo de confrontar o espectador com o seu próprio olhar? De romper com seus hábitos de ver, de o fazer constantemente “se ver” vendo – ou, mais ainda – de se “procurar” como espectador? E não seria esse um modo de  levá-lo a  “aprender” a ver de outro modo?

A terceira experiência invocada envolve a imagem e aciona outra modalidade de aproximação do espectador, que não se dará mais no espaço, mas no tempo. Trata-se da vídeo-instalação “Broadway 2000”, do fotógrafo americano Cragie Horsfield, exposta no Museu Jeu de Paume, também em Paris. Conhecido pelos seus projetos comunitários de forte teor político e pelos seus retratos de tiragens próprias e únicas, a instalação de Horsfield contempla esses dois aspectos do seu trabalho – a dimensão política e o retrato – mas ultrapassa, ao mesmo tempo, este duplo foco.

São quatro telas formando um grande quadrado; o espectador se põe no meio e pode acompanhar o que se passa em todas elas, apenas deslocando o olhar ou se virando ligeiramente. O título “Broadway 2000”, em princípio, não identifica a situação apresentada. A imagem mostra várias pessoas reunidas em círculo em torno de algum acontecimento que nunca se vê; um único movimento lateral de câmera, um travelling, as pega pelo busto – como num retrato; a câmera se detém longamente sobre cada uma delas, permitindo seu exame acurado; eventualmente se aproxima um pouco mais de uma ou outra figura.

Nas quatro telas trata-se sempre do mesmo plano, mostrado em ligeira decalagem temporal, de modo que o espectador possa voltar à tela anterior e ver como uma dada imagem tem início; ou saltar para a tela seguinte e ver como esta última imagem evolui na sua seqüência. Além disto, uma intervenção no tempo das imagens torna o travelling muito mais lento do que o habitual, gerando um efeito extraordinário. Esta lentidão nos permite perceber aos poucos, mas nitidamente, que os espectadores filmados olham algo de muito comovente: em cada rosto uma emoção vai pouco a pouco se desenhando: espanto, incredulidade, dor. Se lembrarmos a bela análise de Jean Epstein ( 1983; p.278) do close up como processo de geo-morfisação do rosto, de sua des-humanização (vistas de muito perto, as rugas de um sorriso formariam uma verdadeira “orografia”), fica evidente que aqui assistimos à preparação das emoções no rosto humano – ou seja, ao modo segundo o qual este se “humaniza”: vemos se armarem as contrações musculares, formar-se uma lágrima, percebemos como ela desliza pela face; ou então como os olhos “focalizam” um determinado ponto, nele se concentram sem poder se afastar[3]. Por meio da lenta e minuciosa reconstituição dos diferentes afetos que tomam as pessoas, é como se estivéssemos vendo, ou aprendendo a ver de novo o rosto humano.

A propósito do retrato costuma-se dizer que a pose exige uma “concentração” do sujeito em si mesmo, sua “condensação”, para que o aparelho possa captá-lo na sua “verdade” mais íntima. Na instalação de Horsfield parece que estamos assistindo, ao contrário, às transformações permanentes de um rosto, a sua maleabilidade e flexibilidade, a sua constituição e ao seu permanente desfazer-se. Só aos poucos nos damos conta de que estes espectadores comovidos e comoventes estão, pela primeira vez, diante do buraco das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque – e que o dispositivo criado por Horsfield nos mostra a mais violenta e a mais delicada das imagens desse desastre. É esta opção estética do autor, fundada na lentidão das imagens, que torna evidente o caráter político do seu trabalho; pois é por meio da observação minuciosa dos afetos despertados no público que tomamos consciência da violência de um evento (espetacular e espetacularizado) que, aqui, é subtraído ao nosso olhar ,  que sequer contemplamos.

A aproximação dos objetos, seu exame acurado pelo espectador nas duas primeiras exposições não são mais, no trabalho de Horsfield, operações que atuam no espaço; são, antes, “aproximações” que se efetivam no tempo. Aqui, aprender a ver não implica mais a construção de uma estratégia espacial, nem exige um confronto com o próprio olhar; ao contrário, o espectador deve se entregar ao tempo do trabalho, a sua duração, e só pode aprender a ver em função desse tempo consagrado à contemplação da imagem, a sua inteira manifestação.

2

Abrir-se para as novas formas e usos das imagens tanto na arte quanto na vida contemporânea, atentar para a constituição da nova sensibilidade que emerge da renovação e da ampliação da visualidade – estas são condições imperativas para aprendermos a ver diante das novas modalidades de exercício da visibilidade que a sociedade contemporânea nos propõe.

O segundo ponto a ser examinado – pensar de outro modo o Brasil – implica também em aprender a ver, em tentar olhar o país e suas recentes transformações com outros olhos – ou seja, em descobrir as novas perguntas que lhe devem ser endereçadas. Tomando como referência as transformações pelas quais o mundo passou ao longo dos últimos vinte anos, evocarei apenas dois fenômenos que se complementam – a emergência do mercado como força dominante e o estabelecimento do consenso – para tentar apontar suas repercussões entre nós.

O primeiro deles é a emergência desse o único universal do nosso tempo – é assim que Gilles Deleuze (1992; p 213) define o mercado [4]– que não apenas mudou os países de patamar, padronizou os modos de considerar a vida, de pensar e de sentir, mas também levou à reformulação do próprio modo de fazer cinema. Se atentarmos para a produção cinematográfica que chegou às telas do mundo inteiro nos últimos vinte anos, fica patente que à padronização dos comportamentos, dos desejos e gostos das pessoas corresponde, por sua vez, uma padronização do modelo cinematográfico, a definição de uma espécie de “fórmula” capaz de agradar aos mais variados públicos, do Ocidente ao Oriente.

Se o cinema e também o documentário se voltaram, muitas vezes, para o registro e a análise das mais variadas repercussões deste império do mercado tanto no centro quanto na periferia do mundo capitalista, tal crítica não tem dado a mesma atenção ao modo segundo o qual tais repercussões se manifestam no próprio campo do cinema. A força do mercado tem o dom de tudo assimilar e despotencializar, desencorajando as indagações, a ousadia e a experimentação no âmbito de qualquer prática estética. Mas além desse predomínio avassalador que também reorienta o campo do cinema, particularmente entre nós o caráter universal do mercado põe em questão o primeiro dos pressupostos que sustentou a própria noção de documentário: a suposição da existência de um projeto nacional capaz de conduzir os destinos do país.

Se concordarmos com muitos dos analistas para os quais, no atual estágio do capitalismo, não existe Estado universal porque existe um mercado universal – um fantástico fabricante de riqueza e de miséria cujas sedes são os Estados e as Bolsas, seremos levados admitir que passam a ser postas em questão as concepções de nação e de projeto nacional que alimentaram as vertentes mais criadoras do cinema brasileiro e, em particular, o documentário. Não é minha intenção – nem da minha competência – desenvolver aqui o tema da falência da noção de projeto nacional. Mas é preciso ressaltar que qualquer discussão sobre o estatuto do documentário brasileiro hoje impõe, necessariamente, uma primeira pergunta: se Nação e Estado estão a serviço do mercado, de que país estaria falando o documentário? De um ex-país, como sugeriu Roberto Schwartz[5]?

Em segundo lugar, lembremos que a emergência do mercado não pode ser dissociada do triunfo do consenso como um fenômeno mundial de conseqüências catastróficas – inclusive para o cinema; pois não é justamente o consenso que acalma as inquietações – tanto políticas quanto estéticas – e que impede o surgimento do novo? Ao fazer uma crítica virulenta do consenso que mobiliza as Nações, os Estados e o mercado nas sociedades capitalistas avançadas, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1991; p. 103) mencionavam o sentimento de vergonha, de vergonha de ser um homem nesse mundo como um dos mais poderosos motivos da Filosofia[6]. Esta análise pode ser estendida as nossas sociedades periféricas, que buscam a qualquer custo seguir o padrão do mundo desenvolvido embarcando, também, na onda neo-liberal. Por isto não será abusivo tomar como ponto de partida um pressuposto radical: o sentimento de vergonha de ser homem ao qual se referem os dois autores deveria constituir, nos nossos dias, a mais poderosa razão de ser do documentário, gênero que pretende ser justamente uma testemunha privilegiada do nosso mundo, do nosso tempo.

Ao desenvolver seu ponto de vista a partir do relato de Primo Levi sobre os campos de concentração, Deleuze e Guattari afirmam que não experimentamos a vergonha de ser homens apenas nas situações mais extremas; ela pode ocorrer também em condições aparentemente “insignificantes”, derrisórias, perante “a baixeza e a vulgaridade da existência que assombra as democracias, a vulgaridade no pensar, a propagação de modos da existência e de pensamentos-para-o-mercado, ante os valores, os ideais e as opiniões de nossa época”. Se não nos envergonhamos frente a um programa de variedades, a um discurso de um ministro – a cenas corriqueiras do nosso cotidiano – é porque não paramos de estabelecer com nossa época compromissos vergonhosos, nota o filósofo.

São incontáveis, no nosso dia-a-dia, os exemplos da atuação do mercado e da mobilização do consenso que deveriam engendrar esta vergonha de ser humano. Tomemos um dos mais familiares: o menino que mata outro para lhe roubar o par de tênis[7]. As razões que levam este menino a matar  – uma situação chocante ou extrema, como diria Deleuze – não são, por acaso, as mesmas que levaram a vítima a desejar o par de tênis – situação aparentemente “insignificante”, como designou o filósofo, aceita por todos? Esta atitude considerada banal – a compra do par de tênis – não poderia ser vista como o contraponto exato da primeira, que engendrou o crime? Não seriam as duas apenas formas diferentes de se submeter ao mercado?

É sobre isto que temos de começar a nos perguntar, sobre o que une o desejo de um menino ao desejo do outro. Será que não deveríamos olhar com os olhos do filósofo o fato considerado monstruoso  – o assassinato por um par de tênis – e a ânsia da vítima pelo mesmo objeto, habitualmente tomada como algo corriqueiro? Por que o desejo de um é legítimo e o do outro não? Será que não deveríamos nos envergonhar também por esse  acontecimento tão banal? Mais que isto: com que perguntas preencher a distância que separa esses dois meninos? Como dar conta do espaço social que sustenta esta enorme diferença e no qual se equivalem, ao mesmo tempo, os dois desejos?

Os meninos que matam são velhos conhecidos do documentário, eles são uma das  chamadas “questões sociais”, por ele freqüentada ta insistentemente que estamos até mesmo certos de saber como “representá-los” pela imagem. Mas e os meninos assassinados, não seriam também representantes, apenas com o sinal trocado, de um mesmo fenômeno? Fruto de desejos tão monstruosamente construídos como os do primeiro?  Seria a representação do menino-ladrão completa, sem a representação desta sua contrapartida – a do menino que comprou o par de tênis? Fala-se muito do Brasil como um país “partido” em dois, dividido entre a extrema riqueza e a mais dolorosa das misérias. Ora, esta divisão praticamente “consensual” não poderia, assim como a separação entre os dois meninos, ser também posta em questão? Pois se não há miséria sem constituição de riqueza, nem riqueza sem o seu corolário necessário, a miséria, não somos divididos, cindidos em duas partes opostas; ao contrário, constituímos um todo erigido sobre esses dois pólos solidários e inseparáveis.

Fatos como o dos dois meninos, ou tantos outros onde a violência é um recurso habitual povoam nosso cotidiano e se prestam a demonstrar que as imagens em circulação entre nós não se limitam a representar a guerra surda, não declarada, na qual vivemos. Elas são também parte dela, atuando nas duas pontas desse processo: o desejo dos dois meninos se constitui provavelmente do mesmo modo, provavelmente eles partilham, a respeito do par de tênis, “imagens” idênticas. Precisamos descobrir as boas perguntas que nos permitam entender a passagem de uma situação à outra; perguntas que nos façam entender porque a imagem que suscita o desejo dos meninos é consensualmente aceita, porque a adesão de um deles não coloca problema, enquanto a do outro será consensualmente condenada, até mesmo na sua própria representação por meio da imagem – afinal, muitos documentários “bem-pensantes” não se permitem este ponto de vista?

Passemos agora para o mundo do cinema. Será que não deveríamos também nos envergonhar, quando um dos nossos mais prestigiados roteiristas se vangloria do fato de os cineastas brasileiros e latino-americanos terem se tornado uma “grife” no mercado internacional? Será que esta declaração publicada no ano de 2006 na Folha de São Paulo não atesta que esse profissional das imagens também “acredita”, como os dois meninos, em “grifes” – em imagens – que têm na verdade por função, antes de tudo, promover e sustentar o mercado internacional do cinema? O que pensar das exigências estéticas de quem tem por objetivo “criar” uma “grife” no cinema?

Mercado e consenso, já pudemos perceber, funcionam juntos. Senão, como explicar o lançamento do livro Falcão – meninos do tráfico, de MV Bill, no terraço da luxuosa loja Daslu, em São Paulo? Esse encontro entre dois extremos de um processo único – o consumo dos mais ricos e a violência dos mais pobres – não é um límpido, para não dizer cínico caso desta continuidade? Que perguntas formular diante desse encaixe perfeito de objetivos, dessa compreensão clara e eficaz de como se conjugam o mercado e o consenso? Chegamos agora ao nó da nossa questão: como formular novas perguntas, se o consenso repousa justamente sobre a aceitação? Se o consenso é aquilo mesmo que impede a possibilidade de formular perguntas?

Talvez seja interessante voltar agora ao documentário, para tentar entender como nele vem se formulando, nos dias de hoje, a questão do consenso. A temática derivada da desigualdade social: a injustiça, a miséria, a vida dos desfavorecidos foi tomada, durante muito tempo, como uma recusa do consenso pelo documentário, como uma manifestação privilegiada do seu “compromisso” com o país. Dentro desse universo temático, por ser a parte mais visível da guerra surda em que vivemos, a violência tornou-se o tema de maior repercussãoCom o ressurgimento do documentário nas duas últimas décadas, e também com o recrudescimento da própria violência na nossa sociedade, ela passou a constituir uma espécie de divisor de águas, de referência incontornável a estabelecer os parâmetros da ação dos criadores – ou seja, o tema da violência teria se tornado consenso no documentário e objeto de crítica de muitos realizadores.

Assim, ao declarar sua decisão de não mais filmar os morros, Eduardo Coutinho mencionava a explosiva situação que ali reinava, o permanente estado de conflito como motivo da sua recusa e, provavelmente, a razão determinante de sua escolha de filmar “lugares onde nada acontece” [8]. Também quando apontou os “dilemas” do documentário brasileiro, Eduardo Escorel (2005; pp12-23) vinculou pelo menos dois deles à violência: o fato de que filmar certos temas em determinados lugares pudesse representar uma ameaça à vida dos retratados (sabemos que 16 dos ouvidos em Falcão – meninos do tráfico , 2003 foram assassinados nos dois anos que se seguiram à produção do filme); e a ausência de documentários sobre o momento exato da violência.Enquanto isto, João Moreira Salles reclamava da “obrigação” de filmar a violência nas favelas, manifestando sua decisão de “não subir o morro novamente” desde que o “monótono” discurso da violência repete sempre “as mesmas palavras”- e as mesmas imagens, poderíamos acrescentar. Como novo programa, o documentarista propunha então “enfrentar a vida da gente, os nossos afetos, a nossa eventual mediocridade, a nossa eventual impotência”[9].

A se crer em tais afirmações, essa crítica ao predomínio do tema da violência no documentário, por meio do qual ele recusou o consenso, parece ter-se tornado, nos últimos anos, consenso no documentário. Ao mesmo tempo, a recusa desse pretenso consenso pelos cineastas aqui lembrados, ou a oposição que propõem entre a violência e o não-acontecimento não parece suficiente para dar conta da complexidade das questões que o gênero terá de enfrentar, se quiser lançar outro olhar sobre o país. Assim, se evocarmos a relação estabelecida por Deleuze entre temas significantes e insignificantes,  concordaremos que o foco no nosso cotidiano medíocre, na impotência proposto por Moreira Salles, por exemplo, não representa propriamente uma alternativa à violência como “tema forte”; ao contrário, ambos estão indissoluvelmente atados, como a riqueza e a miséria, como os dois meninos evocados anteriormente. A pergunta a ser feita deveria dizer  respeito, por conseqüência, não a uma suposta oposição entre os dois fenômenos, mas à continuidade entre eles, ela deveria buscar desvendar a fina capilaridade que une o corriqueiro ao excepcional, a banalidade do dia-a-dia ao grande acontecimento. Mesmo o não-acontecimento a que se refere Coutinho  como uma espécie de “avesso” do tão criticado consenso que privilegia os temas ditos “sociais” não acabaria constituindo  uma estratégia que acaba fazendo, do próprio filme, “o” acontecimento?

Chegar às perguntas derradeiras, decisivas – esta é uma tarefa árdua dentro do consenso que sustenta nossas democracias contemporâneas. Pois qual democrata é contra a miséria e a fome que insistem, mesmo assim, em existir no seu mundo? Se qualquer social-democracia “dá ordem de atirar quando a miséria sai de seu território ou gueto[10]”? Carandiru: 111 mortos, nenhum culpado. Massacre de Eldorado de Carajás: 19 mortos, nenhum condenado. Que novas perguntas – e que cinema fazer – quando o templo máximo do consumo da maior cidade do país – a Daslu – e o outro extremo da sociedade – aquele que gera a violência da qual esses consumidores vivem se defendendo – se congraçam em torno de um livro e de um filme contra a violência?

Para recusar a grande brutalidade do nosso tempo, para abominar o ignóbil que se tornou a própria matéria da nossa existência, Deleuze e Guattari sugerem uma solução extrema, que talvez possa anunciar, no entanto, o advento de novas perguntas: bancar o animal. Mas o que seria para nós, humanos, bancar o animal? Para nós que conquistamos o pensamento, a razão, que adquirimos a força de imaginar, querer, conceber, mas cuja humanidade está se tornando, entretanto, nossa vergonha maior? Desfazendo-nos destas conquistas, respondem os autores, aproximando-nos (Deleuze dirá num devir) do animal; desfazendo-nos daquilo que nos levou à condição de seres envergonhados; resistindo, como o animal, com todas as suas forças, com seus gestos instintivos, espontâneos: zurrar, cavoucar o chão com os pés, entrar em convulsão. Não aceitando.

A sugestão pode parecer descabida se não nos lembrarmos da importância, para o filósofo, da relação entre pensamento e não-pensamento, da necessidade de pensar o impensável. A monstruosidade, a ignomínia contidas nos nossos poucos exemplos não nos colocam   justamente diante desse impensável? Do sofrimento que representa pensar sobre “isto”? É por isto que, para o filósofo, o próprio pensamento está por vezes mais próximo do sofrimento de um animal que morre do que de um homem vivo, mesmo democrata.  Lembremos que o general americano Ralph Peters declarou recentemente, em nome da democracia:  “para manter a segurança no mundo em favor da economia americana” (…) “estamos dispostos a matar um número aceitável de pessoas”[11]?

Como pensar, senão com o mesmo sofrimento do animal que morre, quando se é um homem “desse” tempo?

Procurar as perguntas incontornáveis, definitivas – eis um árduo programa a ser perseguido para romper o consenso. Esta não é, entretanto, uma tarefa a ser exigida apenas dos  documentaristas. A incumbência de formular novas perguntas que interroguem de que é feito o nosso tempo, o nosso país e que arte deve lhes corresponder – de encontrar, enfim, as perguntas que não separem o plano político do plano estético não pode ser confiada, nem  exigida, de indivíduos solitários; nem tampouco de grupos, como os documentaristas, mesmo se sua arte reivindica um compromisso com o seu tempo. Uma tarefa de tal envergadura supõe, em primeiro lugar, a distribuição eqüitativa da responsabilidade social pelas imagens que todos vemos. Como os criadores, nós, os espectadores, somos também responsáveis pelas imagens produzidas no nosso tempo, devemos também por elas responder e sobre elas temos de ser chamados, também, a refletir. Mais ainda: a exigência de um “salto qualitativo” das questões sobre o Brasil não pode se referir apenas ao campo do cinema, ela supõe uma transformação no próprio contexto político e cultural  do país –  transformação, com toda certeza, difícil de vislumbrar em dias de consenso como os nossos.

Sentir vergonha do seu tempo, resistir; aprender a ver de novo, olhar com outros olhos esse país: duras exigências que talvez levem, um dia, as imagens a grunhir, a zurrar, a entrar em convulsão – como animais que morrem.

Bibliografia:

ATHAYDE, Celso; MV BILL. Falcão – meninos do tráfico. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

DELEUZE, Gilles. Conversações. 1. ed. São Paulo: 34, 1992.

______________; GUATARRI, Felix. Qu’ est-ce que la philosophie?. Paris: Les Editions de Minuit: 1991.

LINS, Paulo. Cidade de Deus. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2003.

Filmografia:

 ATHAYDE, Celso; BILL ,MV. 2006. Falcão – meninos do tráfico. Brasil, 125min.

ESCOREL, Eduardo. 2005. Vocação do poder. Brasil, 110 min.


[1] Bernardet,J-C. Catálogo da exposição “a respeito de Situações reais”, curadoria de Catherine David e Jean-Pierre Rehm, Paço das Artes, São Paulo, maio-junho de 2003.

[2] Já evoquei as novas questões que podem ser colocadas ao documentário a partir do uso recorrente de imagens (fotos, vídeo, cinema) no campo das artes plásticas no texto “Interrogando o documentário brasileiro”, no qual analisei duas exposições:  “a respeito de Situações Reais”, supra-citada, e “Movimentos Improváveis” curadoria de Philippe Dubois e Ivana Bentes, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, maio-junho de 2003. In Sinopse n. 10, ano VI, DEZ. DE 2004. pp 89-96.

[3] Xavier,I.Org. A experiência do cinema, Edições Graal Ltda, Rio de Janeiro, 1983. p. 278.

[4] Deleuze,G. Conversações, Editora 34, Rio de Janeiro, 1992, p. 213.

[5] Prefácio a Crítica à razão dualista – ornitorrico. De Francisco de Oliveira. Ed. Boitempo.

[6] Deleuze,G. Guattari,F. Qu´est-ce que la philosophie ? Les Editions de Minuit, Paris, 1991. p. 103.

[7] O exemplo parece, de certo modo, ultrapassado pelas atuais circunstâncias. Absorvidos pelo tráfico de drogas, os jovens encontram hoje um outro caminho para aceder aos bens que o mercado põe à disposição de quem pode por eles pagar. No seu livro Cidade de Deus, que retratou as transformações de uma comunidade em função da chegada da droga e da instauração do tráfico, Paulo Lins mostra o papel do consumo na entrada dos jovens para esta nova atividade.

[8] “Quatro ou cinco dilemas” in Avellar,JC. Org. Vocação do poder – documentário: espelho crítico do Brasil , SESC,  2005. pp 12-23.

[9] Entrevista a Sílvia Colombo, op. cit.

[10] Deleuze, G., Guatarri, F. Qu´est-ce que la philosophie? Les Editions de Minuit, 1991, p. 103.

[11] Maron, K. “Cada dia é um novo suplício para os iraquianos”. In Folha de São Paulo, 19-03-2006, Caderno Mundo, p. A 35.

Stella Senra

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