Armand Robin – ofício de ouvinte, ofício de poeta

Capítulo da pesquisa inédita de Pós-doutoramento “Armand Robin e o ofício de ouvinte” realizada na Faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC-SP. 1991-1992.

Esse trabalho consistiu no exame da experiência ímpar do poeta bretão Armand Robin que se dedicou, durante o período da Guerra Fria, à escuta das rádios interiores dos países da URSS nas suas línguas originais; a partir do exame minucioso dos noticiários, Robin elaborava boletins bi-hebdomadários destinados a assinantes com um resumo do noticiário e um comentário pessoal a respeito da situação política nesses países. A elaboração dos boletins que contavam, dentre seus assinantes, com o Vaticano, o Serviço de Imprensa do Palácio do Eliseu, embaixadas, jornais, agências de notícias e altas personalidades do governo francês, tinha dois objetivos: obter informações inéditas, precisões ou simples interpretações que pudessem ajudar a compreender as informações oficiais filtradas pelos governos; tentar prever os acontecimentos. Continuar lendo

Mídia, política e intimidade: permutas entre a esfera pública e a imagem na era Collor

Trabalho desenvolvido a partir de uma palestra oferecida no quadro do seminário “Contemporary Brazil” no Saint Anthony´s College, Oxford, 1993. Uma primeira versão foi publicada na revista Cruzeiro Semiótico, n. 18-19, jan-jul. 1993 Porto. A segunda versão foi publicada no livro O Brasil não é mais aquele – Mudanças sociais após a redemocratização. D´Incao,M.A. ORG. Editora Cortez, São Paulo, 2001.

 

Quando se pensa nas transformações políticas, sociais e culturais que o Brasil experimentou nos últimos anos do século XX,  é geralmente unânime o reconhecimento da responsabilidade que cabe aos meios de comunicação – e sobretudo à televisão – pela nova face que o país passa a apresentar e até mesmo pelo modo como ele se vê ou se reconhece, num mundo cada vez mais submetido ao domínio das imagens. Continuar lendo

Imagens de conflito

O 11 de setembro, os Reality shows  e as estratégias de mobilização pela imagem[1]

Palestra apresentada nas Conferências Internacionais de Documentário, por ocasião do 7º Festival “É tudo verdade”, São Paulo, 2002. Título da mesa redonda: “Imagens de Conflito e suas Representações”, com a participação de Maria Dora Mourão (profa. De cinema do Depto de Cinema, Rádio e TV – ECA-USP, Bill Nichols (Prof. De Cinema, Rochester University, EUA, Esther Hamburger (Prof. De Cinema do Depto de Cinema, Rádio e Tv, ECA/USP e Stella Senra (ensaísta e pesquisadora de cinema). Publicado na  revista Novos Estudos CEBRAP, n. 64, novembro de 2002. São Paulo.

No filme de “Elogio do amor”, de Jean-Luc Godard, um personagem diz, num dado momento, a respeito do documentário: nunca soube bem o que é isto. A interrogação tem, de fato, atravessado a história desta modalidade cinematográfica, sempre assombrada por uma promessa de verdade que, se por um lado lhe impôs limites, fez ao mesmo tempo dela um campo rico de discussões e experimentos, que têm contribuído para impulsionar o entendimento da imagem. Esta promessa, de resto, sempre rondou as imagens em movimento, donde a atribuição a elas, como um legado “natural”, de qualidades como a autenticidade, a transparência, a fidelidade que, embora já deslocados do foco principal dos estudos da imagem, são ainda decisivas para a construção do ideário da informação. Se o documentário foi visitado por tal sorte de compromisso com a verdade, diferentemente, no entanto, da informação jornalística, que nunca pôs em questão suas premissas, ele inaugurou uma profícua discussão sobre este regime de imagens, que tanto lhe permitiu reivindicar a legitimidade das suas imagens, a acreditar na sua plenitude, quanto o tem levado a pôr sua inocência em questão, a trabalhar a tensão entre imagem e realidade, ou a testar novas dinâmicas na articulação entre sons e imagens. Continuar lendo

Sara Ramo, ou o exercício da liberdade.

O mundo de Sara é um mundo de coisas: panelas, vidros e potes de creme, xícaras, camas, vasos de plantas, bacias de plástico; ou estatuetas de bichos, escorregadores, pedras, objetos descartados, cadeiras, poltronas de teatro. São coisas banais, com as quais convivemos no nosso dia-a-dia e nas quais já nem prestamos mais atenção. Sara as desloca de seus lugares, agrupa, dispersa; às vezes faz delas um uso inusitado, ou então se limita a isolá-las, apontá-las. São gestos corriqueiros, que fazem parte de nosso repertório cotidiano de movimentos por meio dos quais agimos… Aqui, a dúvida se introduz. Será que “agimos” mesmo sobre as coisas? Ou seríamos, ao contrário, “agidos” por elas? Como dar continuidade à frase? É nesta pergunta, no intervalo aberto por esta interrogação que se insere o trabalho de Sara. Como é possível “agir” sobre o mundo? A liberdade não seria, justamente, a condição primeira para tal ação? Mas não seríamos nós seres de hábito, repetindo sempre os mesmos gestos, obedecendo sem cessar aos mesmos comandos – limitados e por demais empobrecidos para ver além do que nos é dado a ver? Continuar lendo

Leila Reinert

Texto publicado no folder da exposição “ Quando o cotovelo vira coração, poderá a dor dar?” de Leila Reinert.

Diante do título da exposição, o espectador também se faz uma pergunta. Pois o jogo fonético com as palavras “dor” e “dará”m a sugestão de um deslocamento (cotovelo coração) que evoca, ainda, a metafórica  “dor de cotovelo”, e até mesmo a dúvida na forma da pergunta (ou seria uma ironia?) – tudo isso faz pensar que um fantasma ronda a sala. Ele parece, com efeito, espreitar os nus femininos – o nu, ou melhor, o desnudamento feminino não foi um dos móveis de seu trabalho? – que, com o brilho da luz espalhado na região do sexo em formas impossíveis de identificar, ainda parece deixar no ar uma longínqua sugestão de androginia – ou seria uma cópula com a luz? Nos objetos sobre o chão, a presença do vidro associado ao corpo faz crescerem ainda mais as suspeitas. Será que se trata de uma evocação da obra de Marcel Duchamp – pois é bem este o fantasma que aqui assombra – por meio do mesmo material utilizado na composição de La mariée mise à nu par sés célibataires, Même, ou, Le grand verre (1915-23), justamente aquela em que o autor, numa intensas invocação da figura feminina, rompe com toda a convenção artística do passado? Continuar lendo

O último círculo

Mil anos de guerras, mil anos de festas! São os meus votos para os Yanomami. Será uma esperança morta? Temo que sim. Eles são os últimos encurralados. Uma sombra mortal avança de todos os lados… E depois? Talvez nos sintamos melhor depois, uma vez rompido o último círculo desta liberdade derradeira. Quem sabe poderemos dormir sem despertar nenhuma vez… Qualquer dia haverá perto do chabuno torres de poços de petróleo, no flanco das colinas valas de garimpeiros de diamantes, policiais nas entradas e lojas nas margens dos rios… Por toda parte, a harmonia…

Pierre Clastres

“Le Dernier cercle”, Le temps modernes n. 298, 1971. Continuar lendo

O devir imagem das palavras

Sobre o trabalho “Sem título (O restaurador)”, de Rosângela Rennó

(Esse texto sobre o trabalho Sem título (O restaurador), da série Arquivo Universal  de Rosângela Rennó foi publicado em Obras Comentadas da Coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo, São Paulo, 2007. No original, por engano, a obra mencionada foi A Bibliotheca. Fica feita a correção; algumas precisões foram acrescentadas ao texto para maior clareza quanto à obra escolhida.

Arquivo Universal é um arquivo virtual constituído por textos que a artista coleta de jornais desde 1992, histórias comuns que têm por tema gente e a fotografia. Depois de lapidados, os nomes, lugares e datas são eliminados desses pequenos relatos, para serem integrados a um arquivo que não é de imagens, mas de “imagens escritas”.) Continuar lendo

Nas asas do tempo

Estas aparições da cidade, estes vestígios deixados pelo homem, ou mesmo a casual presença humana têm a qualidade de tornar remoto o presente que aqui mesmo se elabora. Marcas deixadas nos muros ou no céu, sombras, vultos fugidios, pequenos gestos ou objetos do cotidiano. Tudo compõe um inventário atual que, no entanto, tomado pelo fotógrafo, parece já refugiar-se como peça arqueológica num passado longínquo, num tempo instantâneamente revoluto. Como nas palavras estampadas num canto de muro, tudo aqui tem raízes e se aprofunda na matéria, que testemunha o fluir do tempo em sua própria permanência. Continuar lendo

Fotografo-archeologo

Il fotografo percorre La cittá come um archeologo. Conscienziosamente, raccoglie i segni che Il tempo elabora, istituendo categorie proprie di registro. Forme, colori, tessiture si staccano dagli oggetti e sorgono como vestigia che si imprimono nella superficie urbana. Anche i rari personaggi, cosi come le figure indistinte, le ombre e i riflessi non ci rimettono e sono modellati, come orme, dalla matéria. Colto come parte di un tutto ancora attuale, Il frammento sorge come reliquia di un tempo rimestato.

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Ocupação

As fotografias de Regina Stella num assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) propiciam uma visão até hoje inédita desse movimento político que, nos últimos vinte anos, tem adotado a ocupação de grandes propriedades rurais tanto como meio de aceder à terra, quanto de pressionar o estado brasileiro para a realização da reforma agrária. Desde que as ocupações de propriedades pelo MST se espalharam por todo o país, e que suas intervenções passaram a mobilizar os meios de comunicação, a imagem desta população abrigada sob barracos de lona, ou caminhando pelas estradas e cidades, ganhou destaque e se tornou o registro mais difundido dos homens, mulheres e crianças que se insurgem contra a distribuição injusta da terra no país. Continuar lendo